O Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, no interior de São Paulo, celebra hoje (12) o Dia da Padroeira do Brasil com a volta dos fiéis nas celebrações no interior da basílica. Por conta das restrições impostas pela pandemia de covid-19, apenas 2,5 mil pessoas acompanharam as missas no espaço com capacidade para 35 mil.
Em 2017, quando se comemoraram os 300 anos da aparição da imagem de Nossa Senhora, o Santuário Nacional bateu o recorde de público com 13 milhões de visitantes. O movimento representou 72% de todo o turismo religioso no país. No dia 12 de outubro daquele ano, 177 mil peregrinos passaram pela basílica.
Os números envolvendo a devoção a Nossa Senhora Aparecida revelam a presença da padroeira em todas as regiões do maior país católico do mundo. Mas como a imagem de Nossa Senhora da Conceição, feita de terracota, com 36 centímetros de altura e 2,5 quilos, encontrada em outubro de 1717 por três pescadores no Rio Paraíba do Sul em São Paulo se tornou símbolo do Brasil?
O historiador e professor da Universidade Federal de Viçosa, José Leandro Peters, autor do livro “A Mãe Compadecida do Povo Brasileiro: Nossa Senhora Aparecida no Discurso da Igreja Católica no Brasil 1854 – 1904”, explica que a imagem de Nossa Senhora Aparecida ganhou projeção nacional somente no final do século 19 e início do 20.
“No início dos novecentos, a cor escurecida da imagem, que foi negada durante um determinado período, transformou-se em sua maior virtude. Ela passou a ser vista como a cambiante das cinco raças, representante de um povo mestiço e cordial”, descreve o professor, para quem a mudança refletia uma estratégia da alta hierarquia eclesiástica.
Os estudos do período posterior à aparição da imagem atribuem à igreja a difusão da ideia da Senhora Aparecida apenas como uma representação de Nossa Senhora da Conceição, numa concepção tipicamente europeia. As primeiras imagens produzidas ou financiadas pela igreja refletem esse esforço, com a imagem de uma virgem branca, seguindo a visão e o contexto social próprios daquele período do século 19.
No entanto, a virgem branca, europeizada, associada ao ideal da igreja de maior rigor e controle dos sacramentos, como parte do processo de “moralização” dos cultos e das manifestações religiosas, não é bem recebida pelos devotos. “Entre eles (devotos), já havia a ideia de uma virgem preta, uma virgem negra ou uma virgem mestiça, por conta daquilo que eles viviam”, argumenta José Leandro.
A imagem de Nossa Senhora Aparecida escurecida pela fumaça das velas e pelo tempo que ficou imersa no fundo do rio já havia dominado o imaginário dos fiéis. Como precisava de maior proximidade com o povo em virtude do esgotamento da relação de poder com o estado, a igreja resolve ceder às manifestações dos devotos.
Para o professor, com a separação entre igreja e estado, que viria a se concretizar com o fim do regime do padroado na Proclamação da República, a alta hierarquia eclesiástica vê no contato com os fiéis uma oportunidade de fortalecimento. “Isso leva a igreja a tentar aproximar seu discurso ao dos devotos.”
É a partir daí que a imagem de Nossa Senhora Aparecida começa aos poucos a ser enegrecida. Ainda assim, a igreja não fala em uma virgem preta, mas de uma imagem mestiça, próxima da população sofredora no interior de São Paulo. As narrativas orais da aparição da imagem, dos milagres e das graças alcançadas começam a ser assimiladas pela igreja.
Além do desejo de setores da própria igreja e do estado, que não queriam mais interferências mútuas, a sociedade em transformação, com o movimento de abolição, com pessoas mestiças e negras incorporando a ideia de povo brasileiro, o alto clero precisava se aproximar dessa nova população. Essa nova imagem da igreja vai ser apresentada em 1904.
“Quando acontece a Proclamação da República e a princesa Isabel vai para o exílio, a igreja precisa, de certa forma, afirmar sua imagem frente ao estado e isso se resolve pela coroação de Nossa Senhora da Conceição Aparecida como uma virgem mestiça no grande jubileu de 1904”, explica José Leandro. Naquele momento, se consolidam as narrativas de uma virgem compadecida dos oprimidos, redentora do povo brasileiro.
Ainda conforme o historiador, “o contexto sociopolítico do final do século 19 esteve intimamente relacionado com a construção desse símbolo católico, que aos poucos foi se tornando também um símbolo nacional com apoio do estado ao longo das primeiras décadas da República”.
A aposta da igreja nos Redentoristas
Em meados do século 19, dom Pedro 2º nomeia Dom Viçoso como bispo da diocese de Mariana. Acompanhando o que acontecia na Europa, ele inicia no Brasil um processo de reforma do catolicismo, com apelo a uma profissão de fé mais interiorizada, focada nos sacramentos e na doutrina moral de Roma.
A proposta de a igreja de ser mais internalista, com os devotos nas missas e nas cerimônias sacramentais, era um claro contraponto ao que se via entre os fiéis brasileiros, com festejos, foguetórios, beijos em imagens e fitas.
No processo de moralização do exercício da fé e de, ao mesmo tempo, iniciar um processo de formação do clero brasileiro, a igreja católica como um todo via a congregação Santíssimo Redentor como modelo a ser seguido. Não demorou muito para os padres redentoristas desembarcarem no Brasil, vindos da Alemanha e da Holanda.
Os primeiros, que seriam direcionados para São Paulo e Goiás, eram adeptos de uma abordagem mais próxima do discurso do fundador da congregação, Santo Afonso de Ligório, para quem a ideia de evangelizar pressupõe também ser evangelizado. Os originários da Holanda, com uma vertente mais rigorosa, pautada por fazer valer os interesses de Roma, dirigiram-se para Minas Gerais e Rio de Janeiro.
De acordo com José Leandro, são os redentoristas de São Paulo os responsáveis pela divulgação da imagem de Nossa Senhora Aparecida. “Eles vão obter sucesso por conseguirem dialogar com a realidade daquele povo, por conseguirem entender de fato que o processo de conversão envolve não só uma ideia de imposição dessa fé pretendida pela igreja católica, mas também de diálogo com aquela população”.
O professor relata certa admiração dos redentoristas pelos foguetórios, festejos e rituais dos fiéis. “Eles não romperam com aquelas tradições populares. De certa forma, o sucesso dessas missões veio porque esses missionários respeitaram as tradições populares locais ao mesmo tempo em que apresentavam novas devoções”.
A devoção negociada
Com o culto a Nossa Senhora Aparecida espalhado por várias regiões do país ainda no século 19, principalmente em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, a igreja se preocupava em institucionalizá-lo, com a construção de uma igreja e a apropriação de algumas narrativas. Além de assumir a ideia de uma virgem mestiça, as narrativas orais começam a ser transcritas.
“Começa então um processo de recolher as narrativas orais pela igreja para fazer as transcrições e torná-las narrativas oficiais. Logicamente que esse processo de institucionalização daquela memória popular instituída passa por um filtro”, explica José Leandro.
Ele revela ainda que, quando se compara outros documentos dessas narrativas com as publicações feitas pela igreja, se percebe um nítido processo de escolha. “A igreja, ao fazer esse movimento de ouvir e de institucionalizar aquelas narrativas, de certa forma, consegue êxito justamente porque aproxima seu discurso daquele discurso popular já tacitamente aceito.”
O professor exemplifica esse processo com as pinturas no interior da chamada Basílica Velha. “Ao entrar nela, há diversas representações dos milagres pintadas no teto. Isso são representações populares, essa memória oral que circulava entre a população e que foi institucionalizada. Então é possível visualizar o processo de negociação da igreja com os devotos.”
Para ele, o modelo pode não ter sido o pretendido pela igreja, mas o resultado foi exitoso para afirmar a própria autoridade eclesial naquele processo de transição entre Império e República. O modelo resultante desse processo, que preza pela negociação em detrimento da imposição, se consolida na cerimônia de coroação de Nossa Senhora da Conceição Aparecida como Rainha do Brasil em 1904.
Mesmo coroada, Nossa Senhora Aparecida não era ainda padroeira do Brasil. Oficialmente, isso só ocorreria em 16 de julho de 1930, por decreto do Papa Pio 11º. No documento, o pontífice disse atender ao pedido do episcopado e do povo brasileiro, “o qual com fervor e piedade constantes, desde os anos do descobrimento das regiões brasílicas até nossos tempos, tem venerado e venera a Imaculada Virgem Mãe de Deus”.
No dia 31 de maio de 1931, uma missa solene é celebrada no Rio de Janeiro, então capital federal, com a imagem da virgem trazida em romaria desde Aparecida. Em 1980, por ocasião da visita de João Paulo 2º, primeiro papa a desembarcar em solo brasileiro, o presidente João Figueiredo, o último representante da ditadura militar, sancionou a lei que tornava o dia 12 de outubro feriado nacional.