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O futebol movido a dinheiro, e agora manchado de sangue

Mohammed bin Salman, príncipe da Arábia Saudita, é o principal nome da compra do Newcastle United por fundo de investimentos (Foto: Fotos Públicas)

Na década de 40, século passado, o Vasco da Gama montou o lendário “Expresso da Vitória” com o que tinha e pequenos acréscimos: buscou um goleiro, Barbosa, no hoje extinto Ipiranga (de São Paulo), um centroavante, Ademir, no Sport Recife (então um time conhecido apenas em Pernambuco) e os “três patetas” (Isaías, Lelé e Jair da Rosa Pinto) no Madureira, subúrbio do Rio – a propósito, o limite das viagens e das crônicas imortais de Nelson Rodrigues.

Mais recentemente, meados da década de 70, século passado, em Minas Gerais (onde o Cruzeiro “roubou” Tostão do América, para deixar de ser apenas um time regional), o Atlético ainda não tinha a Cidade do Galo, em Vespasiano, mas a Vila Olímpica, na Pampulha, viu surgir um bando de jovens talentosos mineiros: Reinaldo (de Nova Lima), Paulo Isidoro (de Matozinhos), Marcelo (de Pedro Leopoldo), Alves (de Esmeraldas) e os belo-horizontinos João Leite e Toninho Cerezo. Eram excepcionais e foram vice-campeões brasileiros invictos em 1977.

No ano seguinte, os campeões nacionais vieram de Campinas, cidade do Guarani, que não tinha um centro de treinamento decente, mas possuía um centroavante de 17 anos, conhecido como Careca (mais tarde o maior parceiro de Maradona), um meio-campista de 20 anos, Renato, e soube fazer as contratações certas, notadamente a do volante Zé Carlos (juiz-forano do Cruzeiro) e a do camisa 10 Zenon (do Avaí de Florianópolis).

São apenas três exemplos e não há hoje, a despeito da passagem do tempo, nenhum vascaíno, atleticano ou bugrino que se preze que não conheça de cor a escalação desses três times. Eram esquadrões do torcedor, de ninguém mais, num sentimento definido nos dias de hoje como pertencimento.

Não é fácil precisar quando isso mudou. Creio que, no Brasil, com a Parmalat, que fez de Palmeiras e Juventude o tal do clube-empresa. A princípio deu tudo certo. O Palmeiras saiu de uma fila de 17 anos sem títulos e o Juventude deixou de ser apenas uma simpática agremiação de Caxias do Sul. Porém, os gestores tinham seus problemas éticos (vide o caso de Cafu) e tudo virou pó com a falência da empresa de laticínios.

Na Europa é muito comum, o futebol movido a dinheiro. Na Inglaterra, por exemplo, o Chelsea, de Londres, e o City, de Manchester, tinham, juntos, apenas três títulos de campeões ingleses, em histórias centenárias e antes de serem comprados por mecenas internacionais – o Chelsea pelo russo Roman Abramovich; o City pelo sheik Mansour Bin Zayed Al Nahyan, membro da família real dos Emirados Árabes.

Com o dinheiro para contratar os melhores jogadores disponíveis no mercado mundial vencer campeonatos, inclusive europeus, virou rotina. Porém, não é mais um clube, é um time, renovável pela roda da fortuna a cada temporada.  Mais parecido com uma torre de babel. Não é rara a rodada em que Chelsea e City entram em campo sem nenhum inglês – goleiros brasileiros ou poloneses, zagueiros nigerianos ou alemães, laterais ucranianos ou portugueses, meio-campistas belgas ou franceses, atacantes argentinos ou espanhóis…       

Os torcedores, em sua maioria, gostam, como se os fins justificassem os meios. Os “modernos” aceitam, em nome da tal globalização. E, afinal, é “apenas” o dinheiro destruindo as coisas simples. 

Porém, era “apenas” dinheiro, pelo menos implicitamente. Não é mais. Com a aquisição recente do Newcastle, clube do Nordeste da Inglaterra, pelo príncipe da Arábia Saudita, Mohammad bin Salman, o futebol do investimento, do capitalismo, do lucro passa a ser escancaradamente manchado de sangue. Os torcedores do Newcastle, em sua grande maioria, já escolheram de que lado estão, a julgar pela insana festa nas ruas da cidade depois da concretização do negócio. Mas terão que ser responsabilizados, pois a cada gol ou faixa de campeão colocada no peito eles estarão sendo cúmplices do assassinato e esquartejamento do jornalista Jamal Klashoggi, a mando do novo dono do clube, ou fechando os olhos para as atrocidades cometidas pelo governo do pai do dono no Iêmen e na Síria.

Há dezenas de exemplos e não será a última vez, mas o caso Newcastle é explícito demais, com potencial de virar um marco. Se a torcida do time inglês aumentar ao redor do mundo (e essa é a tendência) é sinal de que os cínicos e irresponsáveis sempre tiveram razão: “É apenas futebol, que, afinal, não se mistura com política”.