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Atenas, Barcelona, Manchester… Como os negros foram omitidos da história de Juiz de Fora?

“Se você for folhear o ‘Álbum do Município de Juiz de Fora’ (organizado por Albino Esteves e publicado em 1915) isso fica muito claro: as fotografias não têm gente ou tem pouca gente. Costumo dizer que essa ausência de gente é muito simbólica, porque, se não tem gente, a gente que tinha, eles não queriam nas fotos”.

A observação é da professora da rede municipal de Juiz de Fora, Giovana Castro. Doutoranda em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), coordenadora do projeto Juiz de Fora: Cidade Negra do Labhoi/Afrikas e integrante do Coletivo Cabeça de Nêga, ela explica que os tais álbuns de municípios eram comuns no país e tinham a função de criar o mito fundador.

Em Juiz de Fora, boa parte dessa gente ausente no álbum era negra. A omissão, que se manterá por vários anos, integrava o projeto de cidade gestado por sua elite. Isso remonta aos meados do século XIX, segundo Giovana Castro, quando ocorre a emancipação da Vila de Santo Antônio do Paraibuna.

“Juiz de Fora é emancipada em 1850 e começa todo o processo de melhorar a ‘urbe’. A cidade não tinha recursos próprios para isso. Não havia uma coleta de impostos que permitisse a criação de um caixa público. O dinheiro sai do bolso dessa elite, e essa elite paga por um projeto da cidade que ela queria. Ela paga por uma cidade moderna. E, nessa cidade moderna, a população negra só tem entrada pela porta dos fundos.”

Mas de onde vem o dinheiro da elite juiz-forana? Primeiramente, alerta a pesquisadora, é preciso saber quem integrava essa elite. “Trata-se de uma elite agrária, que é uma elite escravocrata, atravessada pelo processo do que a gente chama de segunda escravidão”.

Ela explica que, diferentemente da noção de escravidão do livro didático, muito cristalizada na figura dos engenhos açucareiros, os mais três séculos de trabalho escravo não comportaram apenas um formato. Juiz de Fora é uma cidade do século XIX, da segunda escravidão, quando a mão de obra escravizada é responsável por dar uma organização ao capitalismo desse período.

“Essa elite juiz-forana faz uma opção pela escravidão no século XIX, quando a questão dos escravizados já frequentava os debates éticos no mundo inteiro, já era um sistema de trabalho compulsório questionado eticamente, inclusive com o Brasil enfrentando sanções internacionais em relação à manutenção do tráfico (de escravos)”.

O modelo de cidade moderna pago por essa elite se reflete nas publicações, não apenas no ‘Álbum do Município de Juiz de Fora’, mas nos jornais e escritos dos historiadores. “Desde o início, essa escrita de Juiz de Fora, a Atenas mineira, a Manchester mineira, a Princesa de Minas, não inclui a população negra”, argumenta a pesquisadora.

Isso acontece em todas as publicações dos chamados historiadores amadores, que são aqueles autores do século XIX.  Na cidade moderna das primeiras narrativas, conforme Giovana Castro, em momento algum se vê a intenção de contar a história pelo viés da escravidão. “Fica a ausência de uma presença negra enquanto explorada como mão-de-obra escravizada”.

Ela conta que essa escrita mitologizada e laudatória dos grandes homens, das mulheres maternais, inventada a partir do final do século XIX e início do século XX, permanece mais tarde, quando são publicados outros livros sobre a cidade, notadamente com a criação do Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora.

Com a inauguração da Universidade Federal de Juiz de Fora, no início da década de 1960, a escrita permanece. “O próprio Departamento de História se organiza desracializando as pesquisas. O que eu quero dizer com isso? A população negra de Juiz de Fora fica presa ao capítulo da escravidão no século XIX, igualzinho no livro didático, e, quando entra no século XX e se começa a discutir trabalho, movimento operário e greve, não tem cor nessas pessoas”, avalia Giovana Castro.

Para ela, isso começa a mudar a partir das publicações que começam a marcar a presença negra em Juiz de Fora como o livro da Rita Félix “O Negro: Trabalho, sobrevivências e conquistas – Juiz de Fora (1888 – 1930)” e as publicações da Elione Guimarães, professora de história e diretora do Arquivo Histórico Municipal.

Mas até chegar nessa fase mais recente, o que se tem é uma Juiz de Fora que se inventa moderna. Isso, adverte a pesquisadora, a despeito das ruas esburacadas, com a falta de luz, com a lama do bairro Bom Pastor, com os canjerês atravessando a cidade ou com os negros reunidos na Praça do Riachuelo tratados como caso de polícia.

“Os negros não são operários. Eles não são moradores, não são contribuintes. Tudo que é publicado pelo menos até boa parte do final dos anos 80 são pesquisas vinculadas ou pela negação da cor ou pela ausência da cor.”

Belle Époque mineira apaga a escravidão

Com o fim da escravidão e o alvorecer do século XX, a elite econômica e intelectual de Juiz de Fora começa a traçar uma nova identidade, desvinculando-se do império e consolidando o mercado de trabalho.

Esse movimento, segundo o professor Luís Eduardo de Oliveira, do Núcleo de História do IF Sudeste, mobiliza vários elementos de vanguarda e progresso. “A escravidão será apagada. Não se fala mais em império. Tudo passa a ser uma variação do apelo ao progresso.”

Os intelectuais, que são membros da elite econômica, adotam a mudança de discurso nos jornais e em outras publicações. “O passado escravocrata desaparece. O discurso do progresso assume novos elementos de dominação. Era a forma de justificar os baixos salários, os miseráveis em Juiz de Fora”, explica o professor.

O historiador, professor da rede estadual de educação e colunista de O Pharol, Mateus Fernandes, argumenta que, com a cidade industrial, a “Manchester mineira”, “cria-se um ambiente que se desvincula do ambiente agrário, das lavouras de café e, consequentemente, do trabalhador negro”.

A distinção era clara, explica Mateus Fernandes. “Apagar a escravidão significa apagar o negro da sociedade juiz-forana. A escravidão e o negro representam o regresso, o atraso. Por outro lado, a indústria e operário imigrante são o progresso, a modernidade. É a Belle Époque mineira.”

O processo de apagar o passado escravocrata da cidade progressista e de vanguarda, segundo o historiador, não implica na ausência de negros em postos de trabalho, desde os informais, como nas feiras e nos “bicos”, mas também nas oficinas e nas marcenarias. “Mas para a história do movimento operário identificar a contribuição do negro na Primeira República é um desafio.”

Quanto a isso, Mateus Fernandes chama atenção para as fotografias das fábricas nos primeiros anos do século XX. “Embora seja possível identificar a presença de pretos e pardos entre os trabalhadores fabris, isso fica oculto nas fontes escritas”.

Para ele, a questão não está no trabalho industrial em si, mas na condição socioeconômica do negro na sociedade.  “Ele (negro) foi relegado à situação de pobreza, exclusão e violência. Esse aspecto guarda de fato raízes históricas, dada a inexistência de qualquer projeto de integração dos negros à sociedade brasileira após a abolição.”

Quanto à situação dos negros no pós-abolição, Luís Eduardo cita trabalhos de pesquisadoras e pesquisadores juiz-foranos que mostram um movimento da elite para manter os negros fora da cidade. Muitos permaneceram de forma itinerante na Zona da Mata, chegando a Juiz de Fora definitivamente nas décadas de 1920 e 30. “Era preciso mantê-los nos campos. A urbe era um espaço fabril moderno próprio para os trabalhadores imigrantes.”

O mito do imigrante empreendedor em Juiz de Fora, com identidade mais hegemônica da cidade, é sintoma de uma vontade de esquecer a violência escravista, segundo explica a professora do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora, Hebe Maria da Costa Mattos. “É essa violência que funda toda prosperidade econômica do sudeste brasileiro, a prosperidade econômica do Brasil, sobretudo o que se industrializa no final do século XIX nessa região.”

A professora concorda também quanto a um “silenciamento” sobre a história da experiência negra na liberdade. Ela explica que já havia uma população livre de origem africana, após a “Lei do Ventre Livre”, ainda século XIX, mas sobretudo no pós-abolição no século XX. “Esse silêncio já tem sido quebrado há muitos anos através principalmente de pesquisas”.

“Pessoas negras eram moídas pelo sistema econômico”

A ausência dos negros na escrita laudatária da história, notadamente no período pós-abolição, ajudou a apagar a herança africana em Juiz de Fora. Muito diferente do que ocorre na criação do mito do imigrante empreendedor.

Para o professor Ângelo Carrara, da Universidade Federal de Juiz de Fora, havia uma questão anterior. “Para realçar a cultura africana, era preciso conhecê-la. Isso praticamente não havia. Os africanos escravizados iam perdendo a cultural original”.

Mesmo com alguns hábitos tendo sido incorporados, notadamente na culinária, não havia muito do que se lembrar. “Essas pessoas eram moídas pelo sistema econômico, não restando uma memória a ser preservada.”

Esse processo, segundo o professor, envolve a “morte da língua”. “Isso é algo terrível. Os escravizados não falavam. Tiravam-lhes a língua e a religião. Assim, eles deixavam de ver o mundo como seus ancestrais, perdiam essa conexão. Não eram donos do próprio corpo, não eram donos da vida.”

Como não há mais chegada de escravizados africanos a partir de 1850, na virada do século XIX para o XX, a memória que se tem já é em português. “Isso não aconteceu com o imigrante, que não foi capturado e nem escravizado. Também manteve sua língua e suas práticas religiosas”, explica Ângelo Carrara.

Como não bastassem todas as limitações dos escravizados, as memórias ainda eram determinadas pelas classes dominantes. No Brasil, segundo o professor, o primeiro livro tratar dos negros é “Casa-grande & Senzala”, de Gilberto Freyre. Mesmo assim, só começou a ser debatido por aqui após sua publicação nos Estados Unidos, em 1945.

Ângelo Carrara lamenta que o ensino de história nas escolas foi e continua sendo focado na exaltação de personagens brancos. Mesmo com a aprovação da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-brasileiras na educação básica. “Os livros didáticos seguem com foco nos personagens. O sistema econômico nivelou tudo pela cor da pele.”

Os desafios para mudar a escrita

Se os estudiosos seguirem discutindo sobre as origens de Juiz de Fora, sua fundação e sua história, debatendo se o responsável foi o alemão Henrique Halfeld ou o português Antônio Dias Tostes, seguirão representando o racismo estrutural do país. O alerta é da professora de História Colonial da Universidade Federal de Juiz de Fora, Mônica Ribeiro.

É preciso mudar. No século XIX, segundo ela, Juiz de Fora era a maior cidade negra de Minas Gerais. “Indivíduos negros e suas famílias escravizadas constituam mais da metade de sua população. Certamente, cada edificação erguida, cada centímetro construído foi gerado pela força física, pelos saberes e competências de sua população escravizada”.

A professora Giovana Castro lembra que a história do negro não é uma história à parte da história. “A forma como a história foi contada acabou corrompendo a possibilidade de narrativas de ambos os lados, por isso temos vários buracos e silêncios na história de Juiz de Fora”.

Esses buracos e silêncios, segundo ela, informam muito sobre muitas coisas. “Porque são coisas que não estão narradas. Então, preciso botar o dedo na ferida e reconhecer como é que se dá o lugar do negro e como é que se dá o lugar do branco nessa geografia. Aí você esbarra na discussão do racismo no país que ainda discute se é um país racista.”

O desafio que se coloca, explica Giovana Castro, é popularizar o acesso às informações. “As pessoas precisam saber, apesar de ter se tornado muito mais usual agora, quem é Rosa Cabinda, quem é Jesuína, quem é Rita, quem é Desidério, quem são essas pessoas que estiveram no campo de protagonismo em Juiz de Fora no século XIX.”

Dessa forma, ela vislumbra a possibilidade de se quebrar a ideia de uma escravidão mais branda e, principalmente, a ideia de que a população negra desapareceu pós 1888 numa das maiores cidades escravistas da Zona da Mata. “É só você andar pelas ruas de Juiz de Fora que você percebe o quão nítido é essa presença negra”.

O conhecimento também é o caminho para a mudança da escrita sobre os negros em Juiz de Fora na avaliação do professor Ângelo Carrara. “É preciso que se faça uma efetiva valorização da língua. Quais línguas falavam os escravizados desembarcados no Brasil? Onde falavam? O que falavam?”

Ele considera que ainda é necessário realçar a cultura africana nas escolas. “A mudança começa dentro da sala de aula, destacando a riqueza cultura africana. Precisamos de livros de história que sejam úteis. Vamos começar a estudar suas formas de artes. Isso irá cativar muito”.