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Por que o projeto de cotas no serviço público enfrenta tanta resistência na Câmara?

Projeto de lei que tramita na Câmara de Juiz de Fora foi construção do movimento negro (Foto: Renato Roseno/CE)

O projeto de lei 158/2021 começou a tramitar na Câmara de Juiz de Fora em meados de agosto deste ano. A proposta apresentada pelas vereadoras Laiz Perrut (PT), Tallia Sobral (PSOL) e Cida Oliveira (PT) prevê reserva de 20% das vagas para negros e pardos nos concursos públicos municipais do Executivo e Legislativo.

Com parecer favorável de todas as comissões, o texto entrou na pauta no período legislativo de outubro, precisamente no dia 22. Foi quando o vereador Vagner de Oliveira (PSB) fez o primeiro pedido de adiamento.

Quando a matéria retornou à pauta, no dia 25, foi a vez do vereador Sargento Mello Casal (PTB) protelar a votação. Dois dias depois, Bejani Júnior (Podemos) usou do mesmo artifício. Com isso, a proposta foi adiada para novembro. Na última quinta-feira, Sargento Mello Casal se valeu de outro recurso regimental para impedir a votação.

Os constantes adiamentos são vistos pelas entidades e movimentos sociais que participaram da construção do projeto de lei, por meio de discussões com a Comissão Especial para a Promoção da Igualdade Racial da Câmara, como desrespeito. “Queremos que se vote a matéria. Quem for contra, que vote contra”, afirma Paulo Azarias, do Movimento Negro Unificado.

Para ele, a ideia de fazer alterações, com a adoção de cota social, não contempla os movimentos sociais. “Juiz de Fora tem uma dívida histórica com os negros. A cidade teve muitas mãos negras na sua construção, mas manteve até hoje a desigualdade de oportunidades. O argumento da cota social esconde mais uma vez os negros.”

Sargento Mello, que tem assumido a defesa por mudanças no projeto, questiona a eficácia da política de cotas e cobra reestruturação da educação básica. Em discurso voltado para integrantes do movimento negro presentes na Câmara Municipal, ele considera a proposta como manobra política de setores da esquerda.

Com apenas um vereador – Nilton Militão (PSD) – que se declarou preto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), dois vereadores pardos – Antônio Aguiar (DEM) e Cido Reis (PSB) – e uma vereadora parda – Tallia Sobral (PSOL) -, o Parlamento local é formado por maioria branca. Esse formato de composição vem se repetindo mandato após mandato.

Não por acaso, toda vez que a questão racial entra em pauta, as opiniões se dividem e acirram. Em 2015, quando o então vereador Roberto Cupolillo (Betão-PT) apresentou proposta para instituir o dia 20 de novembro, data do aniversário da morte de Zumbi dos Palmares, como feriado municipal, foram feitos oito pedidos de adiamentos de votação.

 Ao fim, o texto foi aprovado por 11 votos favoráveis e sete contra. Em seguida, entidades empresariais recorrem à Justiça contra o feriado. Por 12 votos a oito, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais acatou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) apresentada pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg).

Por que cotas raciais existem?

Se duas pessoas vivem em situações desiguais e forem concorrer nas mesmas condições, concretamente a desigualdade será perpetuada. As ações afirmativas seriam uma maneira de colocar essas pessoas no mesmo patamar de concorrência.

No Brasil, a desigualdade abrange o âmbito econômico, social e, principalmente, o da educação e das oportunidades. Negros e pardos representam 56% de toda a população brasileira, mas não são maioria nos espaços considerados importantes, como chefias de empresas e outros cargos de relevância social.

Os negros se fazem muito mais presentes, segundo dados de 2019 do IBGE, na agropecuária, na construção, no comércio, no transporte, alojamento/alimentação e nos serviços domésticos. Esses setores empregam em torno de quatro milhões de pretos e pardos, contra cerca de dois milhões de brancos.

Por outro lado, o mesmo levantamento mostra maior presença branca na administração pública e nos setores de informação e financeiro, dois grupos de atividades conhecidos por melhor remuneração e condições de trabalho.

Ainda segundo relatório do IBGE, entre os 10% mais pobres da população brasileira, 78,5% são negros e 20,8%, brancos. A situação se inverte entre os 10% mais ricos: 72,9% são brancos e 24,8%, negros.

A desigualdade observada na iniciativa privada não é muito diferente no funcionalismo público. Em 2014, a lei federal nº 12.990 determinou reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos federais para pessoas negras. Legislação semelhante tem sido adotada em todos os níveis federativos. Juiz de Fora tenta implantá-la agora.

Nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicada neste ano, mostra que negros estão proporcionalmente mais presentes em cargos municipais, nos quais os salários são menores. Em relação à docência universitária, de acordo com o Censo da Educação Superior, em 2014 eram 60.194 os professores negros, ou 15,2% do total. Em 2018, 65.249, 16,4% do total.

O quadro da desigualdade social entre negros e brancos nos mais variados setores ocorre em função da diferença de oportunidades. Essa questão está historicamente relacionada à escravidão.

O resultado das cotas

A história pode mudar. Em 2018, pela primeira vez, considerando apenas instituições públicas, estudantes pretos e pardos totalizaram 50,3% das matrículas, de acordo com o IBGE.

Um dos fatores aos quais os pesquisadores creditam esse avanço é o sistema de cotas, que reserva vagas a candidatos de determinados grupos populacionais, além de programas de apoio e expansão em universidades federais.

Essa mudança começou em 1997, quando apenas 1,8% dos jovens entre 18 e 24 anos que se declararam negros havia frequentado uma universidade, segundo o IBGE. As políticas públicas em torno do direito universal de acesso ao ensino superior começaram a ser reivindicadas pelo movimento negro.

Em 2012, a lei federal nº 12.711 estabeleceu que 50% das matrículas de institutos e universidades federais devem ser destinadas a estudantes de escolas públicas. Metade dessas vagas é reservada a jovens com renda familiar igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita. A outra metade destina-se aos demais alunos, com renda familiar superior a esse patamar.

Em cada categoria de renda, a instituição deve reservar vagas para pretos, pardos e indígenas de acordo com a proporção desse grupo na população estadual.