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Atingidos na alma: imagens de uma vida, de uma história que foi limada pela lama

José Lins Cerceau e Constância Catarina Ramos Cerceau viveram uma vida em Paracatu de Minas, onde criaram a filha Naife Cerceau (Fotos: Márcia Costa)

Era uma manhã de sábado, o primeiro dia de dezembro de 2019. Minha amiga Naife e eu acordamos cedo para pegar o ônibus da linha Mariana- Águas Claras em direção ao sítio onde ela nasceu em cresceu com seus pais. A casa que tiveram que abandonar tempos depois, inabitável e isolada depois que a lama das barragens de Fundão, da Samarco (Vale e BHP), devastou a comunidade de Paracatu de Minas, em 2015, em Mariana (MG).

O trajeto de 36 km de Mariana até Paracatu de Minas revela, aos poucos, as majestosas montanhas de Minas, entrecortadas pelas curvas da estrada que nos leva até aquela pequena comunidade. Da janela do ônibus avistamos a vida que foi varrida de cena pela violência da lama, carregando consigo casas, objetos, animais, pessoas, sonhos.

O rio já não é mais o mesmo, contaminado pelos dejetos, e as janelas das construções parecem nos interpelar com um olhar de tristeza e solidão. Uma das poucas edificações intactas, a igreja da comunidade exibe em suas paredes as marcas da altura da lama que atingiu a todos. Escola, bares, mercados, nada mais existe. Findou-se o burburinho dos sábados à tarde no campo de futebol e os risos de festa das celebrações populares, típicos de comunidades mineiras. Eram todos amigos, uma grande família.

O ônibus atravessa o silêncio da comunidade e nos deixa em uma encruzilhada. Dali até o sítio de Naife são quase três quilômetros a pé, carregando sacolas pesadas de mantimentos e driblando o barro dos dias chuvosos. Naife, que nos últimos anos morava em Mariana para trabalhar e estudar, ia quase todos os finas de semana levar alimento e remédio para os pais, já que o comércio da comunidade não mais existia.

Depois de muitas subidas de morro e paradas estratégicas para um respiro, avistamos a bela casinha da roça. O sítio fica em uma parte alta da região, e ainda que não tenha sido atingido fisicamente pela lama, foi profundamente danificado por ela, isolado de tudo e de todos, tornando a vida ali inviável para um casal da terceira idade que precisa do apoio de outras pessoas para sobreviverem.

O lugar onde Naife Cerceau nasceu e cresceu com a mãe, Constância Catarina Ramos Cerceau (hoje com 73 anos), e o pai, José Lins Cerceau (hoje com 79 anos), foi um testemunho derradeiro da vida que emergia daquelas montanhas calmas. Uma casinha protegida pela cruz do catolicismo e cercada por um quintal, um curral, uma horta, animais domésticos, gado e muitas plantas. O retrato da vida que era simples, tranquila.

A casa foi construída quando os pais de Naife eram namorados. Foram 43 anos ali, nutrindo-se da terra e das muitas amizades no entorno. Depois do rompimento da barragem, ela e os pais ficaram quatro anos isolados da comunidade, com a qual conviviam diariamente. O moinho d’água usado pelos vizinhos para transformar o milho em fubá era um dos fortes elos de contato entre as pessoas da localidade.

Perderam amigos, parentes, funcionários que auxiliavam na produção e venda de alimentos, e as duas hortas. A família vivia da venda do leite e do queijo, dodoce de leite, do louro, das verduras e dos escambos realizados na comunidade. Vários amigos dos pais morreram de depressão, arrancados dos seus afetos, já que a maioria não se adaptou à vida na cidade, boa parte custeada pela empresa, que paga um aluguel e um cartão de alimentação para os atingidos.

Depois da destruição, a luta da filha foi incessante para provar que a família tinha direito a ser reconhecida como atingida – a empresa alega que a área onde o sítio se localiza não está inserida no território do desastre ambiental. Foram quatro anos até que a Caritas, que atua no caso em defesa dos atingidos, fez um dossiê comprovando a dependência da família à vida da comunidade.

Distantes do acesso a qualquer tipo de serviço, em uma ocasião que o pai adoeceu, a mãe, que tem problemas nos joelhos, precisou percorrer a pé mais de 7 km em busca de socorro, já que não há telefone no local. Por conta do estado de saúde do pai, a justiça foi convencida a tirar a família de lá e transferi-la para outro sítio, que Naife escolheu em Furquim, distrito localizado a 35 km de Mariana. É um lugar bonito, ela conta, mas bem menor que o sítio onde ela nasceu. Não há água para os animais e galinhas e o inverno seco matou os peixes do lago. O forte da produção do sítio era a leiteira, mas, quando se mudaram para o novo sítio, ficaram sem curral por um ano, perderam a venda do leite e do queijo e até hoje não foram ressarcidos pela empresa. A área da pastagem é menor e, dada a dificuldade para alimentar o gado, até agora já tiveram que vender seis cabeças. Como a empresa não os reconhece como atingidos, não ajuda com a ração do gado. Com o cartão que recebe no valor de pouco mais R$ 1 mil, a família precisa alimentar o gado, se alimentar, custear a conta alta de energia elétrica e os remédios dos pais. “Depois do rompimento da barragem, meus pais adoeceram. O meu pai adoeceu logo na mudança”. Só os medicamentos do pai custam por mês R$ 600 reais, fora os da mãe. Para manter minimamente as despesas, semanalmente a filha percorre Mariana a pé tentando vender os queijos produzidos pela família.

Mas o problema maior é que a qualquer momento eles podem ser retirados do local, já que vivem de aluguel. Para cuidar dos pais e do sítio, Naife trancou o curso de Técnico de Enfermagem, que ela pretende voltar a frequentar no ano que vem. A saúde do casal sofre o impacto diário do medo de perder o lar. “Meu pai vive em extrema insegurança aos quase 80 anos, e isso colabora para que ele adoeça com maior frequência. Minha mãe sofre ao ver meu pai sofrendo. E eu tenho que ficar mendigando qualidade de moradia, o que é nosso por direito”, desabafa a filha.

Seis anos após a destruição da barreira de dejetos da Samarco, poucas famílias foram indenizadas e puderam voltar a viver em casas próprias. Com a pandemia, os atingidos se reúnem menos para defender seus direitos, via online. A reconstrução das comunidades pela empresa ainda é um sonho distante que se arrasta desde a data do pesadelo inicial. “É difícil pensar em voltar para a casa de origem – sem morador tudo fica muito pior”. O sítio onde Naife nasceu continua lá, intacto, mas a vida ao redor se foi.

Mariana cidade, Mariana pessoa

Este é um nome importante na minha história. Estive ligada a esta bela cidade mineira por um período, enquanto lecionei disciplinas ligadas à Fotografia pelo modo remoto. A Universidade Federal de Ouro Preto me ligou à cidade e à pessoa Mariana – mais que uma estudante, artista das mais potentes. Mariana se tornou a amiga a quem admiro bastante, pela potência do olhar sensível para o mundo. É por meio de gente como ela que é possível narrar as devastações que este Brasil vem testemunhando nos últimos anos. Por isso, convidei-a para apresentar sua visão de Bento Rodrigues, enquanto falo de Paracatu de Baixo, comunidades devastadas pelo rompimento de uma barragem há seis anos. Uma história que chocou mineiros, brasileiros, um mundo todo. E que permanece à espera de uma resposta justa para centenas de famílias atingidas na alma.

Bento Vive

Por Mariana Paes (texto e fotos)

Bento Rodrigues foi palco de uma devastação. Um grande erro que poderia ter sido evitado por homens. E o que resta de Bento? Viver. Diante da dor, da ausência, do descaso. Bento Vive!

Andar por vestígios de um crime. Caminhar por saudades de lares. Para então, adentrar em memórias que lama (água) alguma pode apagar. O distrito que chamou atenção do mundo como palco do maior desastre ambiental do mundo tem um nome forte: Bento. Como adjetivo, qualifica aquele que é consagrado com uma bênção e, como verbo, nos protege benzendo – tirando de nós todo o mal.

A água que abençoa, limpa e purifica, recebe a lama da ganância humana. A lama invadiu casas e sonhos. Quantas memórias foram marcadas com o tom alaranjado do crime? O sofá enlameado, o sapatinho enlameado, os eletrodomésticos enlameados, as paredes enlameadas… e o coração? Esse também carrega as cores desse trauma.

Se esse nosso órgão fosse tão resistente como a força da natureza, já estaríamos vendo-o despontar de uma tímida esperança e ressignificar a dor. Seria isso possível? Bento está lá. Vivendo. E suas memórias? O que faremos com elas?