A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que acontece anualmente nesta época (final de outubro, início de novembro), sempre foi um catálogo certeiro de como os cineastas-pensadores veem, no calor do momento, os temas da humanidade. Por apresentar centenas de filmes, de dezenas de países, produzidos ou finalizados no ano – ou no máximo no biênio – vigente sempre representam um afresco das, principalmente, angústias que começam a afligir a cada um, seja ele um morador das metrópoles ou das aldeias mais remotas da Mongólia.
É assim há pelo menos 37 anos e quem acompanha a Mostra vê em primeira mão visões originais e na maioria das vezes duradouras da globalização, do advento das redes sociais, das crises dos refugiados ou da falta de perspectivas dos jovens. O único senão da Mostra é que seus filmes, em sua imensa maioria, nunca chegam ao circuito comercial. Vê-se uma vez em São Paulo e pronto.
Na edição deste ano, a 45ª, era natural esperar pelos filmes sobre a pandemia. E as expectativas foram confirmadas.
No francês “Os Anos 20”, numa Paris recém-libertada da fase letal do vírus a diretora Elisabeth Vogler coloca a câmara no ombro e acompanha pessoas passeando e conversando nas ruas da capital francesa, sempre em duplas: o casal de desconhecidos (ela visivelmente perturbada pelos acontecimentos recentes); duas estudantes de Artes; dois amigos de infância; um casal de amigos muito íntimos; duas adolescentes que se divertem praticando pequenos furtos; uma noiva que deixou o pretendente no altar e um motoqueiro; mais dois amigos (um que vive no celular e outro ciclista, que faz poesias enquanto pedala); um ator e seu agente (e ele, o artista, é o único que sente falta das máscaras – citando os primórdios do teatro, mas ao mesmo tempo negando: “elas não expressam nada, nem tristeza e nem alegria”); um negro sempre fugindo da polícia e seu amigo fã de futebol; uma leitora das cartas de tarô e uma asiática, bastante confusa com tudo (e é a vidente que, depois de citar a história do vice-rei de Sardenha em outra peste, define: o século 21 começou em Wuhan – remetendo a outra sentença, de Theo Angelopoulos, na Mostra de 1995: “O século 20 começou e terminou em Sarajevo”.
“Os Anos 20” é, no entanto, um filme otimista, de celebração da vida. Diferentemente do iraniano “Distrito Terminal” (de Bardia Yadegari e Ehsan Mirhosseini), onde o vírus destruiu tudo e do russo “Molodi” (de Alexander Seliverstov), onde dois jovens se refugiam no campo (já que a cidade fechou todas as coisas interessantes), mas descobrem que se isolar não é uma alternativa tão boa assim.
No norte-americano “Ayar” (de Floyd Russ) não há otimismo nem pessimismo exagerados, mas a personagem é acusada o tempo todo de ter destruído suas relações pessoais com cuidados excessivos, que beiram a paranoia: “coloque máscara”, “mantenha dois metros de distância, é sério”, “você está tossindo, vá ao médico ou suma daqui” …
E há ainda inúmeras referências à peste em outros filmes, explicitas ou nem tanto. No espanhol “Eles Transportam a Morte” (de Samuel Delgado e Helena Girón), quando os desertores da esquadra de Cristóvão Colombo chegam em terra firme, a primeira coisa que eles veem são morcegos. E não muito longe dali, quando uma jovem (“ainda sem viver sua vida”) cai inexplicavelmente doente, alguém procura a curandeira, mas a velha senhora descarta solução, por ser um mal desconhecido.
E na melhor tradição dos ensinamentos de Godard (“A arte não é o reflexo da realidade e sim o reflexo desse reflexo”), o libanês “O Mar à Frente” (de Ely Dagher) traz as melhores alegorias e metáforas sobre os tempos atuais. Passado na Beirute pós-explosão no porto, não há nenhuma referência direta à peste, mas a cidade está fantasmagoricamente deserta, como em um lockdown. Todos estão perdidos e refazendo conceitos e planos. E a personagem principal espera o tempo todo um tsunami, “o que mais pode ser e acontecer?”.