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Pedagogia do ausente

O drama já virou piada. Professor perguntando diante de telas pretas, câmeras desligadas: fulano, cê taí? Parece sessão espírita. Só que não é piada nem novidade. Ausência em sala de aula é coisa séria e tem vários níveis.

O aluno que não liga câmera pode ter suas explicações: não tem câmera, não tem dinheiro pra comprar câmera, não tem internet que comporte a câmera ligada. Ou pode ter suas má-vontades: não quer, não tá com o cabelo arrumado, não vestiu a roupa certa, não saiu da cama ainda, não acha apropriado… Todo mundo se ferra nessa troca, é via de mão dupla: o professor não tem pra quem falar, o aluno não existe.

Duas histórias ilustrativas, fatos reais, como diz a redundância:

História 1. Professor recebeu de um colega pedido de indicação de aluno pra fazer estágio na empresa dele. Geralmente estágio é uma porta pra emprego, na mesma empresa ou em outra, porque tem o certificado. O professor respondeu: “cara, desculpa, não tenho ninguém, não conheço ninguém.” Cheio de aluno, provavelmente alguns habilitados pro tal estágio, mas todos com câmera desligada na aula. Se deram mal e o mercado também.

História 2. Aluno reclamou de nota, mas como a coordenação do curso não é mais uma sala distante e sim uma caixa de mensagens como outra qualquer, foi lá que o aluno reclamou ao invés de questionar a professora. A coordenação entrou em contato com a professora, informou o caso e perguntou: quem é o aluno? A professora não soube responder. Depois consultou anotações, viu o nome e era só isso: um nome.

Ainda em tempos de aulas presenciais, muitos alunos sequer sabiam os nomes dos professores. Chamar de professor, fessor ou nem isso já tava valendo. Professor Fulano tava fora de cogitação. O coitado do docente passava o semestre ou o ano todo tentando lembrar que nome marcava qual cara e às vezes lembrava anos depois, quando encontrava na rua. E era chamado de fessor…

Sem câmera ligada pelo menos o jogo virou. É como ter um amigo de Facebook que te dá likes no final do exercício: esse é o professor. Do outro lado, cada rótulo debaixo de um quadradinho preto é um aluno dormindo/comendo/zapeando/se fodendo pra aula. Um aluno ausente.

Quando chega o final do bimestre ou do semestre ou do ano ou até a nota da prova o aluno aparece com lágrimas nos olhos jamais vistos, com lamentos na voz jamais ouvida e com intimidade pra quem nunca se apresentou. Hipocrisia tá nisso, como no grego que significa ator: na representação do que não é.

O isolamento social foi nocivo pra pedagogia. No espaço do afeto por excelência, de aprender o relacionamento social, o vazio se impôs. Pessoas que conversam o dia todo com câmeras, trocam imagens com amigos e até, com maior ou menor risco, vão pra espaços coletivos e postam fotos em suas redes sociais continuam dizendo que não dá pra ligar a câmera.

Não, não e não. O lugar do sim, do encontro (com abraço ou sem abraço, mas encontro de ideias) e dos recomeços se tornou o fim. Como ensinar o sim no mundo em que o outro insiste no não? Cadê o Paulo Freire que ensinou tijolo pro trabalhador? Até com ele tá difícil.

Há exceções, claro que há. Em algumas turmas mais da metade liga a câmera. Em outras, um ou outro fala “eu ligo sempre”. Casos otimistas e ainda assim prejudiciais à coletividade. E quando o sujeito liga, apresenta um trabalho e desliga na vez dos colegas? Caramba, que egoísmo.

Triste ver a sociedade cobrar tanto do professor e não perceber o aperto (professor sempre passa aperto) redobrado nesse mais de ano de videomaking no lugar do plano de aula. Triste perceber o quanto uma situação difícil afastou pessoas quando deveria aproximá-las. Triste ter que aprender a conviver com a ausência.