Diversidade

Juiz de Fora, monumento da branquitude ‘redentora’ e outras cidades numa

As bases da ideia tão naturalizada de uma cidade industrial moderna, integrada ao sistema capitalista, “a Manchester mineira”, estão assentadas num projeto eurocêntrico gestado pela elite branca agrária-escravista da região, especialmente  da segunda metade do século XIX, ressoando como legado eminente das narrativas até os dias atuais.

Como sintetizou o historiador e professor Mateus Fernandes, em matéria publicada recentemente em O Pharol , a construção e manutenção da identidade juiz-forana brancocêntrica estão diretamente ligadas às práticas discursivas que visavam apagar a escravidão e a importância do contingente populacional negro dessa sociedade. “A escravidão e o negro representam o regresso, o atraso. Por outro lado, a indústria e o operário imigrante são o progresso, a modernidade”, afirma Fernandes.

Nos últimos anos, a produção de artistas atuantes em Juiz de Fora tem trazido para o primeiro plano dos debates e práticas culturais locais um esforço de revisão sobre o papel de instâncias estéticas na perpetuação dessas narrativas, memórias e identidades locais (também regionais e estaduais). A presença de artistas negras, negres e negros cada vez em contato mais vivo com a cena artística institucional tem causado ruídos e tensionamentos nas dinâmicas simbólicas que operam historicamente na reprodução dessa imagem brancocêntrica da cidade de Juiz de Fora, materializada em tantos monumentos, nomes de ruas, edifícios e instituições públicas. 

Talvez um dos mais profícuos seja o escritor e professor Edimilson de Almeida Pereira, que conta com um histórico de inúmeras publicações de sua poética desde 1985. Em 2020, assinou quatro livros: uma antologia de seus melhores poemas recentes (pela editora 34), “O Ausente” (ed. Relicário), “Um corpo à deriva” (ed. Macondo), e “Front” (ed. Nós). O último livro rendeu ao autor o Prêmio São Paulo de Literatura, divulgado no final de novembro. O romance narra a trajetória de um homem que se constitui a partir dos escombros de uma cidade hostil e monta, peça por peça, o mosaico da sua subjetividade com os estilhaços de uma vivência de violência, abandono e desigualdade.

 Em uma passagem de “Front”, Edimilson condensa em imagem literária os emaranhados de temporalidade e territorialidade que chamam atenção para a complexidade das narrativas nas quais nossas visões de mundo e de nós mesmas estão imersas: 

“Para chegar a homem-árvore há que se quebrar o disco. Nascer duas vezes. Morrer na primeira para ver o ridículo do script. Na segunda, bem, não ser o que se espera do paraíso. Ditar a velocidade da roda e a cor do globo terrestre: calça larga para flutuar no eclipse, camisa em pluma, cabelo pensante. Sim: há outras histórias, entende? Outra língua: que excede de tanta sede”.

Vale lembrar ainda da poesia falada e cantada de Laura Conceição, poeta e MC que brilhou  em uma das lives animadas pela cantora Teresa Cristina  desde o começo da pandemia. A circulação de Laura por várias partes do país movimentou uma perspectiva sobre o mundo que vem da periferia de Juiz de Fora, como também vem fazendo outra artista de destaque nos últimos anos, a Mc Xuxú, cujas produções musicais e audiovisuais demonstram a qualidade, atualidade e articulação entre artistas atuantes na cidade. Ambas reivindicam os lugares de corpos marginalizados pela narrativa branca juiz-forana e sua materialização em segregação urbana.

Nesta minha primeira contribuição para o Jornal O Pharol, dou início ao que pretendo compor como uma série de notas sobre a produção artístico-cultural que dialoga com a cidade, dela, para ela, sobre e através dela. Buscarei sempre trazer a música, o cinema, o teatro, a dança, a literatura e outras linguagens para a conversa, mas antecipo que os disparos centrais da minha escrita virão das artes visuais, de obras, exposições e entrevistas com artistas, pesquisadoras/es e curadoras/es que se dedicam também às artes visuais.

Uma das principais respostas político-institucionais a essa movimentação em termos de políticas públicas para a cultura em Juiz de Fora é a criação do edital Quilombagens, como componente da formulação atualizada do Programa Cultural Murilo Mendes. Com esse dispositivo, se anuncia o objetivo de “fomentar ações e iniciativas culturais, em sua diversidade, promovidas pelos agentes culturais do município e que estejam diretamente relacionados com a valorização da cultura negra e de sua ancestralidade”. Poderemos acompanhar seus frutos ao longo de 2022.

Duas exposições de arte contemporânea realizadas em Juiz de Fora nos últimos anos, anteriores à pandemia, são destacadas por Carolina Cerqueira e Vermelho – artistas-pesquisadoras integrantes do Terreiro de Pesquisas Laroyê, do Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A primeira, intitulada “Preto ao Cubo”, foi constituída por obras de 24 artistas negres, montada na Galeria Guaçuí, do Instituto de Artes e Design (IAD), em 2016, com curadoria de Eliane Bettocchi e Karina Pereira, ambas arte-educadoras negras que trabalham em Juiz de Fora. Karina contou sobre sua experiência na elaboração da mostra “Preto ao Cubo” em uma live mediada por Carolina Cerqueira e por mim. 

Seguindo essa proposta de Carolina e Vermelho, a “FRAGRANTE Mostra de Arte” veio como uma segunda plataforma de visibilidade da produção poética e reflexão estética de artistas negres na cidade. Ocupou a Galeria Heitor de Alencar do Centro Cultural Bernardo Mascarenhas por oito dias de 2019, exibindo trabalhos de 21 artistas negres: Augusto Henrique, Aparecida Petronilha, Bárbara Morais, Carolina Cerqueira, Dayane Máximo, Guilherme Borges, Gezsilene Oliveira, Lucas Soares, Luíso Camargo, Maury Paulino, Maré, Noah Mancini, Paula Duarte, Zaíra Tarin, Rafael Coutinho, Stain, Tainá Neves, Talitha Reis, Task, Ugo Soares e Ygor Ventura.

Desse amplo conjunto, Carolina e Vermelho tomam obras de três jovens artistas negras de Juiz de Fora para demonstrar como suas criações evidenciam questões cruciais para se abordar aspectos muito pulsantes da produção artística atual.

Com a obra-vida de Zaira Tarin, a noção de “autodefinição” é colocada no ato de renomeação por meio do qual artistas da diáspora africana no Brasil problematizam e reconfiguram as camadas narrativas de que seus nomes e sobrenomes estão carregados Tais artistas evocam relações de violência física e simbólica da estrutura colonial-escravocrata e de seu legado até os dias de hoje (objetificação, posse de pessoas, exploração, estupros, genocídio, assimilação, desigualdades, etc). Nomeando a si mesma, Tarin reivindica outras fabulações para (re)imaginar a si mesma e os mundos possíveis do passado, do presente e do futuro que perpassam sua existência. Ainda antes dessa autodefinição, em 2016, a artista apresentou suas ideias e experimentações no programa Diálogos Ausentes do Instituto Itaú Cultural.

Outra artista desse grupo é Paula Duarte, jornalista de formação que atua artisticamente com várias linguagens. Além do videoclip de McXuxú mencionado acima, sob direção de Paula, elas também colaboraram na criação da obra “Brilho”, uma intervenção imponente com projeção de fotografias na fachada do CCBM, em 2017. Os registros ampliados e iluminados das mulheres trans e travestis da cidade invertiam vetores de invisibilização para apresentar seus corpos como parte de uma celebração com status oficial. “O Centro Cultural está localizado em uma das avenidas mais movimentadas da cidade durante o dia, tem comércio diverso, circulação de ônibus que conectam diversos bairros da cidade, carros y pedestres. Porém, as trans y travestis que Paula convida para sua fotografia  são  aquelas  que  procuram  evitar  a  passagem  por  essa  mesma  avenida  antes  da  madrugada.  O  motivo  dessa  restrição é a marginalização que nega a essa população certos deslocamentos físicos y sociais”, analisaram, à época, Carolina e Vermelho. 

Em diálogo com isso, Paula entrou em outra colaboração para viabilizar uma obra de extrema delicadeza e força, quando, em 2018, após o assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, imprimiu o rosto da socióloga e política em dezenas de pipas que foram empinadas por ela, amigas, amigos e crianças. Para Carolina e Vermelho, o trabalho de Paula Duarte estimula a se considerar o posicionamento das pessoas  no mundo em que habitam e a se implicar nesse mundaréu de relações, nos questionando sobre como somos atravessadas ao mesmo tempo em que as compomos, as construímos, as mantemos, e podemos redesenhá-las.

A terceira artista que apontam é iúna mariá. Ela se autodefine assim mesmo, com todas as letras minúsculas, e sua obra traz de maneira bastante inteligente uma série de questões sobre os símbolos que nos representam. Na que se intitula “Brasil de Verdade”, de 2019, exposta na mostra “FRAGRANTE”, a artista cria outra versão da bandeira nacional, substituindo o verde e amarelo pelas cores preta e vermelha, representando as populações negra e indígena, bem como as entidades da Pombagira e de Exu, como salientam Carolina e Vermelho. O círculo azul é coberto pelas cores da bandeira do movimento transgênero (azul claro, rosa e branco). A frase no centro diz “DEVOLVE O BRASIL PRA NÓIS”. Desse modo, “a  artista  critica  a  noção  de  linearidade  da  história  y  de  continuidade  desse  tal  ‘progresso’,  assim  como  a  bandeira  brasileira  em  verde, rosa y ‘ÍNDIOS, NEGROS E POBRES’ da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, no carnaval de 2019”, lembram Carolina e Vermelho.

A monumentalidade dos símbolos, memórias e narrativas oficiais do Estado Brasil, bem como alguns elementos de peso na construção de uma identidade mineira com raízes coloniais-escravocratas-patriarcais, são alvo de experimentações poéticas e performáticas de duas artistas que viveram parte de sua formação em Juiz de Fora. São  elas Terra Assunção, que reside hoje na Hungria, e Walla Capelobo, que retornou à sua cidade natal, Congonhas. Em suas obras, as artistas questionam a naturalidade com que se encaram determinados símbolos de manutenção da positivação do período colonial, propondo caminhos para descolonizar a perspectiva que se tem da história, dos territórios, de grupos étnicos, de nações, de religiosidades e etc. Dedicam-se a cultivar o que Carolina e eu chamamos de “Plantação de outras memórias”, título da live no programa “uma conversa sobre coisas que são muitas”, na qual ambas  falam sobre suas trajetórias e processos criativos. 

Esse programa de conversas transmitidas pelo Youtube ao longo de um ano, de dezembro de 2020 a dezembro de 2021, é uma iniciativa do projeto Mesmo Sol Outro, criado e elaborado pela multiartista-pesquisadora Carolina Cerqueira e por mim, Tálisson Melo, artista-curador-escritor-pesquisador. Através das lives realizadas quinzenalmente, cada uma com duas pessoas convidadas,de Juiz de Fora e de diversas outras cidades do Brasil, articulamos uma rede de artistas, ativistas, educadoras/es e pesquisadores/as de diversas áreas do conhecimento para discussões acerca de arte e cultura, patrimônio e memória, cidade e corpo, direito e economia, educação e política. Esses temas foram os referenciais do longo processo de pesquisa e criação que começamos juntos, Carolina e eu, em 2015, com a exposição “Dessemelhança Construída”, no CCBM, premiada pela mostra JF FOTO15.

Mais tarde, se ampliando com financiamento via Instituto Itaú Cultural, uma vez que fomos selecionados pelo edital Rumos, pudemos então nos lançar  em um percurso de imersões que abarcou Juiz de Fora, Bias Fortes, Lima Duarte, Viçosa e a comunidade quilombola de Colônia do Paiol,  na Zona da Mata mineira; depois, passamos repetidas vezes pela cidade do Rio de Janeiro; também pela capital de Angola, Luanda; Joanesburgo, na África do Sul; Salvador, Cachoeira e São Félix, na Bahia. Dessa jornada, coletamos materiais plásticos para elaborar poeticamente as experiências e percepções que uma mulher negra e um homem branco podiam vivenciar e contrastar. Tudo isso foi reunido em um livro publicado em 2018, em São Paulo, com acesso gratuito pelo site do Itaú Cultural . Desde então, passamos a expor o livro e trabalhos derivados dele em exposições, fóruns e congressos pelo Brasil, nos EUA, África do Sul e México, até que as atividades expositivas tiveram de ser interrompidas  por conta das medidas de isolamento social para o combate à pandemia de Covid-19.

Muito inspirados por Teresa Cristina, rainha das lives nesses dois  anos, criamos o canal e o programa de conversas virtuais para manter a latência dos encontros, trocas intelectuais, artísticas e pessoais. A princípio, essas conversas chegam  em seu último episódio no dia 13 de dezembro, às 19h, com as presenças da curadora e historiadora de arte Luciara Ribeiro, de São Paulo, e do sociólogo Guilherme Marcondes, de Fortaleza. Vamos tratar exatamente das tensões e questões ao redor da ausência e/ou presença de pessoas negras fazendo e curando arte no Brasil. Ambos desenvolveram pesquisas quantitativas e qualitativas a partir de levantamento de escopo nacional, um rico material para se repensar sobre os impactos das desigualdades raciais na história da arte e na arte atual. 

Na última conversa, “Contradições do espaço/Estado brasileiro”, quando tivemos a presença do sociólogo e curador Leonardo Fabri, da Casa do Saber de São Paulo, e do artista Lucas Soares, atuante em Juiz de Fora e atualmente com obra integrante da exposição “Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros”, no Instituto Moreira Salles de São Paulo. Leonardo apresentou uma leitura das práticas discursivas da economia, da ciência e do direito para a manutenção do racismo estrutural na sociedade brasileira, com base numa série de políticas públicas do pós-abolição que visam trazer europeus para os postos de trabalhos, enquanto a população negra foi abandonada à própria sorte, ou sendo relegada a dinâmicas de exclusão, marginalização e genocídio, para concretização de um projeto de nação moderna que promoveu uma enorme desigualdade social com componente racial inquestionável. 

Retomando a fala de Mateus Fernandes sobre a identidade juiz-forana, vemos que essa não se difere muito de uma tendência de escopo nacional. Por outro lado, alguns elementos de seu construto material e simbólico são específicos, como demonstra o artista Lucas Soares ao promover uma série de intervenções ao redor do monumento ao industrial Bernardo Mascarenha, que pode ser conferido na apresentação do artista sobre o próprio trabalho durante residência no Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto. 

Trago a página final do livro “Mesmo Sol Outro”, co-autoria de Carolina Cerqueira e Tálisson Melo, na qual manipulamos uma fotografia de uma escultura presente no acervo do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora. Trata-se de um bronze intitulado “Princesa Isabel a Redentora”, feita logo após a assinatura da Lei Áurea, em 1988. Uma leitura da obra é proposta pela antropóloga branca Lilia Schwarcz questionando a imagem de “abolicionistas salvadores”. Em outra página de “Mesmo Sol Outro”, é possível ver como a mesma narrativa de naturalização de hierarquias entre pessoas brancas e negras, perpetuada através da imagem da princesa, “a redentora”, em posição altiva, acompanhada da imagem de um homem negro não identificado a louvando aos seu pés. Trazemos uma fotografia de outra escultura, mais moderna, de meados dos 1940, que reinstala esse conto de branquitude redentora na forma de uma cruz, espreitando o lago do parque do mesmo Museu que salvaguarda a outra escultura. Ambas ilustrativas da maneira como a branquitude se constrói e se perpetua nos espaços de memória da cidade.