Dezembro é sempre a mesma coisa. Com ligeiras modificações, que mais reforçam que negam a sensação de déjà vu, é sempre o mesmo amontoado de gente se acotovelando pelas lojas e ruas. Normalmente, embaixo da mesma chuva. São sempre os mesmos especiais na televisão. Os mesmos filmes! Alguma historinha de Papai Noel, uma das inumeráveis versões ou imitações de Esqueceram de mim e – mais cumprindo um compromisso etimológico que por convicção – o mesmo filminho de Sessão da Tarde contando a história de Jesus Cristo. Depois, entupidos de tanto comer e ainda sob o efeito das alucinações causadas pela overdose de Então é Natal, tudo termina numa queima de fogos que só não é a mesma porque há trezentos gramas de pólvora a mais.
Poderíamos dizer que, em tempos de pandemia, alguma coisa mudou. Mas, até isso teve limite, pois o apego ao círculo de repetições é tão vicioso que – Vejam só! – até os famigerados foguetes já estão retornando, em muitos lugares. Vai que, pela falta deles, 2020 não percebeu a senha para picar a mula e ficou por aí, a nos atazanar, né?
Enfim, já que falávamos em filmes vistos e revistos, foi num desses dias que um deles me fez perceber a possibilidade de uma reflexão diferente. Isso numa comédia das mais prosaicas. EmTodo Poderoso, Jim Carrey (fazendo as mesmas caretas e piadas) encarna o papel de Bruce Nolan, um jornalista que, frustrado com os seguidos insucessos na carreira e na vida, interpela Deus de maneira tão iracunda que acaba por merecer uma visita dEle. Surgindo sob uma aparência humana, o “Todo Poderoso” (interpretado por Morgan Freeman) oferece a Bruce a chance de, nos limites da cidade onde mora, ser Deus por algum tempo e provar que se sai melhor no cargo.
Aí é que começa o cerne da história. Na posse de tão extraordinários poderes, Bruce resolve “dar um trato” na própria vida: vinga-se de seus inimigos, ridicularizando-os; consegue o sonhado cargo de âncora do telejornal onde trabalha; tem uma noite maravilhosa com Grace, a namorada com quem pretende se casar. Enquanto isso, para não encher o saco, o atendimento às preces – incumbência de Deus – foi comodamente travado por ele numa única resposta: sim!
Num contexto destes, a coisa rapidamente sai do controle. Os desejos mais estapafúrdios são concedidos. A loteria é ganha por tanta gente que o prêmio é uma ninharia. A cidade vira uma terra sem lei e – ao mesmo tempo em que o caos se instala – Bruce é abandonado por Grace (interpretada por Jennifer Aniston) e percebe que todas as coisas com que sonhara de nada valiam.
Solitário, vagando pelas ruas da urbe que desmorona, ele clama pelo auxílio do “titular” do cargo. Quando Deus se materializa, o jornalista afirma não entender como, se os desejos de todos foram atendidos, as pessoas não estavam felizes. A resposta dEle é simples: as pessoas não sabem o que querem. Por isso, miraculoso mesmo não é aquilo que muda a lógica das coisas: isso é truque barato. Os milagres verdadeiros nascem no coração dos homens: a mãe solteira que, apesar dos dois empregos, arranja tempo para dar atenção aos filhos; o adolescente pobre que, vencendo todas as injunções do ambiente, consegue seguir adiante…
Renovado com a lição, Bruce resolve consertar os erros de antes. Passa a ajudar as pessoas, devolve o emprego de âncora, volta a ser repórter de rua. Termina assim, já sem poderes mas perdoado por Grace, contando pela TV histórias de pessoas que auxiliam umas às outras. Sempre encerra tais matérias com a mesma frase: “Seja um Milagre!”
Talvez tenha incomodado vocês recontando um filme visto e revisto. Mas, estou ficando velho. E velhos costumam repisar as mesmas narrativas. Até porque percebem o quanto somos refratários para aprender as lições mais simples.
Esta história, por exemplo, talvez pareça boba por demais, mas traz em si um belo convite à reflexão: “Seja um milagre!” Quantas vezes não temos agido como Bruce, aguardando a benesse divina que trará a felicidade? Nesta época então! Passamos muitas vezes o Natal e Ano Novo a pedir – aos céus ou ao companheiro de jornada – a dádiva que modificará nossos destino. Do amor sonhado à última bugiganga eletrônica inventada! Não que as boas surpresas do caminho devam ser ignoradas. Pelo contrário! No entanto, talvez devamos nos perguntar por que tantas vezes esperamos de fora a luz que iluminará nossas vidas.
Falando em luz, é jargão entre astrônomos e astrofísicos dizer que nós, os seres humanos, somos “poeira de estrelas”, na medida em que os átomos que formam nossos corpos foram forjados no interior daqueles astros. É, de qualquer forma, uma bela metáfora para refletirmos sobre nossa posição no mundo. Uma reflexão que traz consequências, pois, se somos de fato poeira de estrelas, há dois caminhos a seguir:
Por um lado, podemos deixar esta luz se apagar e passar o resto da vida como planetas, astros opacos, a vagar pelo infinito à procura de sóis em torno dos quais orbitar. Por outro, podemos buscar em nossos corações aqueles elementos primordiais com que fomos agraciados, moldá-los sob a pressão de nosso esforço, acendê-los com o combustível de nosso suor, fazendo-nos estrelas de nossas próprias vidas.
Nesse último caminho, é possível que tenhamos a chance, inclusive, de doar um pouco da luz que pudermos produzir àqueles com quem dividimos a jornada. Até porque, muitas das vezes, foram eles que iluminaram nossa senda quando tateávamos na escuridão.
Por isso, no Natal que se aproxima e para o Ano Novo que chega, mais do que dádivas passageiras, talvez devamos solicitar aos céus forças para que, venha o que vier, possamos ser o milagre que desejamos ter, possamos encontrar forças para fazer nossa estrela brilhar.