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Receita para sobras de Ano Novo

(Foto: Zac Durant/Unsplash)

Janeiro é um mês marcado pela necessidade de adaptação. Mas isso não demora muito. Escoam-se alguns dias e o Ano Novo, recebido com pompas, já tá com ares de seminovo. Perde 20% do valor quando sai da concessionária, dizem os entendidos. Também, pudera. Depois das explosões pirotécnicas – no céu, nas casas, nas redes sociais – para (quase) todo mundo, cedo ou tarde, chega o primeiro dia útil, a primeira semana…

Aí, emplacado, o veículo de nossas vidas tem que enfrentar o barro das estradas que trilhamos, e vai perdendo pouco a pouco aquele cheirinho “de fábrica”. Na verdade, o suave perfume mal resiste à suvaqueira que invade nossas narinas quando entramos no metrô, na primeira manhã. Depois, é ladeira abaixo: o primeiro escândalo, a primeira pessoa bacana que se despede deste mundo, a primeira tragédia, a primeira desilusão. Hipocrisia, egoísmo, violência e exploração se sucedem de tal forma que, muitas vezes, o ano chega a fevereiro já batendo o motor.

Creio que parte dessa sensação se deva ao vício humano de domar a natureza. Milênios domesticando animais e plantas foram só treinamento para, no fim, trancafiar(mos) numa gaiola o próprio tempo. Uma jaula de doze barras. Nossa vitória, no entanto, tem gosto amargo, pois há um único modo de prender o tempo: enclausurando-se junto com ele, na mesma armadilha.

Assim, enquanto a Terra inicia uma inédita rebolada no bambolê cósmico que rabisca em torno do Sol – são elipses, disse Kepler –, voltamos à mesma lenga-lenga que tudo reduz a um Janeiro a Dezembro eterno. Querendo controlar uma dimensão essencial da natureza, acabamos prisioneiros de um feitiço: o feitiço do tempo.

Feitiço do Tempo, aliás, é o nome que recebeu no Brasil um filme muito adequado para essa reflexão. Groundhog Day conta a viagem que o arrogante e egoísta repórter de tevê Phil Connors (Bill Murray) é obrigado a fazer. Phill é também meteorologista e, pelo quarto ano seguido, foi escalado para cobrir o “Dia da Marmota”, tradicional evento que ocorre na pequena cidade de Punxsutawney, na Pensilvânia.

O festival se baseia na crença de que uma marmota (que também se chama Phil) é capaz de prever o fim do inverno. O repórter ranzinza deve, ao vivo, noticiar o momento em que o roedor emite seu “veredito”. Mal-humorado, o Phil humano faz tudo de forma burocrática, age com arrogância e desdém com todas as pessoas, inclusive com Rita (Andie MacDowell), a produtora escalada para auxiliá-lo na cobertura. Ao fim do dia, volta ao hotel, para dormir, louco para sair daquele lugar, na manhã seguinte.

O problema é que a manhã seguinte não chega. Logo que acorda, Phil percebe o dia anterior se repetindo. Ele estava revivendo o tão odiado “Dia da Marmota”. E era o único consciente desse fenômeno. O repórter estava aprisionado no “Feitiço do Tempo”.

Daí em diante, fizesse o que fizesse, aquele dia recomeçava incontáveis vezes, com pequenas mutações, conforme variava a forma como ele agia. Primeiro, Phil entra em desequilíbrio, sem saber o que fazer. Até que, num bar, um homem afirma que, se o mesmo dia se reinicia sempre, ele está livre para fazer o que quiser, sem consequências.

Esta é a senha para que o protagonista entre numa segunda fase: aproveitar ao máximo aquele dia eterno. De cara, comete vários crimes de trânsito e é perseguido pela polícia. Depois, sai com as mulheres mais bonitas da cidade, que conquista depois de passar algumas “encarnações” descobrindo tudo sobre elas. Chega, inclusive, a assaltar um carro blindado. Aquele dois de março se reiniciava mesmo, o que tinha a perder?

No entanto, a cada repetição, as sensações de vazio e solidão aumentam. Phil não encontra prazer naquelas distrações. Ao mesmo tempo, vai se apaixonando por Rita. Replica com ela a mesma estratégia que usou com as outras mulheres. Busca, à exaustão, criar o dia perfeito. Sem sucesso: termina sempre rejeitado.

Cai, então, em profunda agonia. Num ato de desespero, sequestra a pequena marmota que simboliza a cidade e se joga, de carro, num despenhadeiro. No dia seguinte, acorda de novo, no mesmo dia, no mesmo lugar. Tenta o suicídio de diversas formas, incontáveis vezes. Mas aquela manhã se repete como uma sina inelutável, um destino de eternidade sem fim e sem sentido. Sempre desperta no mesmo quarto de hotel. No mesmo rádio-relógio, Sonny e Cher cantam I got you babe.

Assim prossegue, destroçado por dentro, condenado a viver, peregrinando sem rumo, mesmo dia após mesmo dia. Até que, certa vez, percebe um pedinte velhinho, com quem sempre se encontra, passando mal num beco. Leva-o ao hospital. O idoso, no entanto, não resiste. Desde então, repetidamente tenta encontrá-lo mais cedo, salvá-lo. Sem sucesso. O prazo do homem expira. Sempre, sempre, sempre…

Com o aparente fracasso, no entanto, Phil se transforma novamente. Dessa vez, para melhor. A partir de então, inicia duas jornadas, complementares: a de autoaperfeiçoamento (aprende a fazer esculturas no gelo, a tocar piano, a executar técnicas de salvamento…) e a de auxílio aos que o cercam (troca o pneu do carro onde estão três velhinhas, evita que o prefeito sufoque após se engasgar com alimento, interrompe o tombo de uma criança…). Melhora constantemente, para fazer melhor a vida daqueles que estão em seu raio de alcance. Assim, aos poucos, trilha o caminho para se libertar do “feitiço do tempo”.

“Existem dois fenômenos que regem o Universo, Cristiano”, dizia o César, entusiasmado, em meio a reflexões sobre a Cabalah. “Um é só doação, só doa sem nada pedir em troca. Tudo o que nos cerca foi dado. Dado! O outro, do qual fazemos parte, só suga, só recebe. E quanto mais recebe, mais quer. Só que esta segunda posição é uma armadilha, um beco sem saída. Só encontra verdadeira paz  aquele que se sintoniza com a força doadora, repetindo seu movimento!”

A conversa prosseguia em meio a coxinhas, risoles e guaraná. Estávamos na festa de aniversário do seu Gustavo, avô do Charles, que nos convidou. Há anos não nos encontrávamos. Depois que o César se mudou para o Nordeste, as ocasiões eram poucas. Daquela vez, calhou de não só de acontecer, mas de o Charles estar junto e nos presentear com aquela oportunidade.

“Tá vendo essa tranquilidade que nos cerca?”, perguntava o César, apontando o tratamento carinhoso da família, com o aniversariante e conosco. “O caminho para isso é complexo. Mas o resultado é simples. Tão simples que quem está mergulhado na ilusão não consegue perceber a nobreza que tem diante de si.”

Hoje, o seu Gustavo não está mais conosco. Libertou-se do encanto, num dia do passado. Qual o idoso de Groundhog Day,cuja vida Phil tenta, de todas as maneiras, prolongar. Quanto a nós, prosseguimos aqui, sob o feitiço de Samsara. Da mesma forma que Phil acordava naquele quarto de hotel, acordamos – por enquanto – a cada janeiro.

O Tempo nos enlaça pela cintura e sussurra em nossos ouvidos: “I got you babe”. O dia/ano que se inicia é uma dança/sina/dádiva de que não podemos fugir.

Conforme Phil pôde perceber, o baile possui algumas regras. É o Tempo que nos conduz pelo salão. Há passos que ele impõe, correnteza a nos carregar. A nós, no muito, cabe o esforço de acompanhar, não afundar, se manter de pé. “Ninguém vai bater mais forte do que a vida”, disse Rocky Balboa ao filho, para depois completar: “Mas não importa o quanto você bate, e sim o quanto aguenta apanhar e continuar lutando. O quanto pode suportar e seguir em frente.”

Para Phil, para quem resiste de pé no ringue/salão, é possível então divisar que, entre ele/nós e o condutor da dança, há um espaço que administramos. Há um território para bailar. Nesse raio de influência, há uma miríade de ações que nos são possíveis, situações em que podemos fazer diferença. Aqui, somos coautores dos sucessos e fracassos. Das lágrimas que, por nossa ação/omissão, escorrem. Dos sorrisos que cooperamos para fazer germinar.

“Sabedoria para discernir”, pede uma prece conhecida.

Quanto terminam as festas de Ano Novo, é importante pensar nas sobras. Mas não se trata, aqui, de restos de comida gordurosa e de refrigerante sem gás. Pois o que mais sobra das festas de Ano Novo é o Ano Novo. Centenas de dias. Centenas de oportunidades que nos esperam, para florescer.

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