Descartes tinha uma certeza: a dúvida. Duvidou de tudo, só sobrou mesmo a dúvida. Quem duvida, pensa. Quem pensa, existe. O famoso cogito, ergo sum. Essa é a base do método, mas ele também tinha outro plano.
Mesmo quem não sabe latim tem umas dúvidas. Duvidar é preciso, porque viver é preciso, diziam os romanos, ou Caetano. Que tinham barcos, não dúvidas. Caetano, aliás, nunca teve dúvidas. Ou não.
A humanidade sempre teve dúvidas que eram enormes, questão de vida ou morte. E nem cabem aqui os clichês das discussões filosóficas, como a existência de deus ou de Sócrates, o que é a verdade ou se a felicidade é um conceito ou uma realidade. Aqui a prosa é mais séria.
O escritor diante da página branca. Quem escreve sabe disso. Quem prepara prova também. A página branca com a perspectiva de ser lida depois ajuda a criar a imagem do escritor acompanhado de uma taça de vinho pra curar angústia. O professor preparando prova acaba na cachaça, é o que permite o orçamento, e nem é pra curar angústia, mas pra dispersar problemas e conseguir dormir. De todo modo, uma dúvida legítima e secular.
Vai um pouco além no caso do escritor, que não sabe se vai ser lido ou publicado. (A vantagem de ser colunista de jornal é pular essa parte.)
Na mesa do bar, do restaurante ou no aplicativo, as opções vão da batata pingando óleo à saladinha ralada, pra cebola e beterraba parecerem capim. O médico falando de um lado, o paladar do outro. A barriguinha querendo ser fit debatendo com o montinho de roupa sobre o tanque é realmente uma querela séria, que passa por pressão estética, gordofobia e qualidade de vida, conceitos mais complexos do que a metafísica até hoje foi capaz de abordar.
Casar ou comprar uma bicicleta? (Pode pedir bicicleta na lista de presente…)
Numa caverna (isso é jogo de RPG), seguir pelo lado brilhante onde está o tesouro ou se deixar levar pelos sons de festa, que podem ser do inimigo? Dúvida cruel, debate na mesa, dados pra decidir. A única certeza é a regra básica da dungeon: o grupo não se separa.
Diversas outras situações, muitas delas seculares, trazem dúvidas, mesmo com algumas certezas. Outras, nem tão antigas assim, geram questionamentos.
Moïse Kabagambe foi espancado e morto por racismo ou xenofobia? É a dúvida. O resto é certeza.
O STF sabia que o impeachment da presidenta Dilma Rousseff era golpe e o ministro Barroso foi claro quanto a isso esta semana (aqui tá em oração direta, pra quem tem dúvida), mas ficou quieto e deixou a bola da democracia furar.
Como o MP, que pediu indisponibilidade de bens do ex-um-monte-de-coisa-do-Bolsonaro Sergio Moro, mas tava com ele lá na época em que ele fez o Lula ser ex-candidato à presidência sem provas.
Essas siglas ali, que deveriam prezar pela lei, tiveram dúvidas quanto à aplicação do que parecia óbvio pra muita gente e pra Constituição (ainda é com C maiúsculo?). O resultado é um despenhadeiro de educação, cultura, saúde, economia, moral, enfim, Brasil a ser curado ao longo de mais de uma geração. O estrago foi grande e a dúvida é se o SUS que cuida disso tudo é tão eficiente quanto o da saúde, que mesmo sucateado quer vacinar todo mundo, até os idiotas que têm medo de serem controlados por satélite (ou seja qual for a dúvida deles, se é que pensam o suficiente pra terem dúvidas).
Em meio a esses cruzamentos de eixos X, Y, Z de discursos nos últimos anos de Brasil, uma dúvida tá eliminada, e isso pelo menos desde 2018: não existe escolha difícil.
P.S.: Estamos em fevereiro, em menos de 11 meses Bolsonaro precisa estar preso, ou o mundo tá pior do que se imagina. Sem dúvida.