Passados quatro anos do bárbaro assassinato de Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, em 14 de março de 2018, a vereadora carioca tornou-se um símbolo internacional da luta pelos direitos humanos. A revolta gerada pela sua morte levou à ampliação da participação feminina em organizações, coletivos e movimentos sociais e culturais.
Os tiros acertaram símbolos e alcançaram ideais: mulher, negra, lésbica e favelada. Desde então houve um forte apelo em favor da participação feminina na política institucional, em particular das mulheres negras. Ainda há um longo caminho a ser percorrido, mas a ideia da trajetória como semente, na acepção da própria vereadora, está florescendo.
Inspiradas pela história de Marielle Franco, mulheres decidiram entrar para a vida política como forma de levar adiante o legado de luta deixado por ela. É o caso de Dandara Felícia, servidora pública federal e suplente de vereadora da Câmara de Juiz de Fora. Ela resolveu se filiar a um partido político no dia 15 de março de 2018, um dia após o assassinato da vereadora.
“Toda a questão da morte da Marielle me tocou muito. Tudo que representava aquela parlamentar brasileira ser morta de uma maneira tão violenta. Aquilo me trouxe um escurecimento de ideia, me trouxe a necessidade de que precisávamos fazer alguma coisa para conter toda essa coisa inominável.”
Dandara conta que, ao mesmo tempo em que havia um sentimento de indignação de que a Marielle não deveria ter sido morta, surgia outro sentimento. “Havia também a sensação de urgência que ela fosse a última, para que nós nos colocássemos nesses lugares de poder como uma forma de enfrentamento com coragem”.
E Dandara foi para a luta. Em 2020, foi candidata a vereadora pelo PSOL e obteve 2.067 votos, ficando com a primeira suplência do partido. Enquanto segue trabalhando, agora como coordenadora do Centro de Referência LGBTQIA+ da UFJF, também se prepara para a candidatura a deputada pelo PT. Sempre em contato com o Instituto Marielle Franco e com Anielle Franco, irmã de Marielle, seu propósito manter vivo o legado da vereadora carioca.
“É preciso levar o legado da Marielle para frente, fazer o enfrentamento a todo esse conservadorismo que se instaurou no Brasil e toda essa violência que se instaurou no país a partir do (Jair) Bolsonaro. Sigo atenta e forte para poder avançar nesse processo, me candidatar, colocar minha figura pública, meu o rosto, meu corpo, para fazer o enfrentamento dessas pessoas que querem nos ver mortas”.
‘Não vejo as mulheres negras periféricas representadas nos espaços de decisão’
Leiliane Germano era ainda estudante em 2016 quando uma pesquisa acadêmica sobre o combate à cultura do estupro a levou ao movimento feminista. “Desde então passei a acompanhar as ações e construções das lutas feministas em Juiz de Fora. Até então eu não tinha decidido que atuaria na política partidária. Nem imaginava que um dia seria candidata a algum cargo político”.
Aí veio o ano de 2018 e as coisas mudaram de forma muito rápida. A repercussão do assassinato de Marielle acabou evidenciando seu trabalho e mexeu com Leiliane. “As circunstâncias políticas do Brasil em 2018, minha aproximação cada vez maior da luta feminista e o conhecimento mais aprofundado da história de vida de Marielle Franco serviram de inspiração pra que eu decidisse me filiar ao PSOL Juiz de Fora”.
Mulher, jovem, negra da periferia. A semelhança impulsiona a vontade de ir para a luta. “Comecei a perceber o quanto era importante a ocupação dos espaços políticos por mulheres negras de periferia. Eu sou moradora da Zona Norte e hoje, enquanto mulher de periferia, não vejo representatividade em vários espaços da cidade. Não vejo as mulheres negras periféricas representadas nos espaços de decisão, pois moramos em uma cidade que nunca elegeu uma mulher assim. E é preciso mudar isso. É preciso reescrever nosso cenário político. Marielle foi e sempre será semente disso”.
Leiliane disputou as eleições de 2020 como candidata à vereadora pelo PSOL em uma proposta de candidatura coletiva de mulheres negras. Há três anos atua em um fórum feminista 8M JF, que defende a ocupação dos espaços políticos “em busca de uma política que realmente entenda a realidade das mulheres”. Para ela, Marielle também é sinônimo de “quebrar as barreiras de uma sociedade racista, misógina e desigual”.
‘Seguir lutando por um país menos desigual e onde a violência não impere’
A vereadora Cida Oliveira (PT) foi para a luta antes de Marielle Franco. Ainda assim, ao falar da vereadora carioca, se coloca como aprendiz de um legado de políticas para as mulheres trabalhadoras. “Quando cobramos das empresas que atuam no Executivo, como prestadora de serviço, e que não estavam pagando o salário e benefícios dessas trabalhadoras em dia, estamos mantendo o legado e aprendendo com ele.”
Das conversas com as trabalhadoras terceirizadas com salários atrasados, surgiu o projeto “Mãe é Mãe”, que amplia a licença maternidade dessas mulheres para seis meses. E ainda há a demanda por vagas em creches, que se tornou outra luta, assim como o firme combate ao desrespeito à democracia, às mulheres, à população LGBTQI+, ao racismo e às minorias.
“As sementes plantadas por Marielle já estão gerando frutos e ainda vão inspirar muitas pessoas a seguirem lutando por um país menos desigual e onde a violência não impere”.
‘Queremos ecoar fortemente as bandeiras que a Marielle ergueu com muita bravura e resistência’
Eleita a primeira vereadora do PSOL em Juiz de Fora, Tallia Sobral tem a trajetória da Marielle Franco como determinante em sua atuação política. “Fazemos da luta da Marielle nosso centro de atuação, buscando representar as mulheres, a população LGBTQIA+ e as periferias, trazendo para o espaço político as pautas e as demandas que não tinham expressividade no parlamento, majoritariamente masculino, cis, hetero e branco”.
A vereadora conta que seu mandato constrói a “Agenda Marielle Franco”, com o compromisso de apresentar pautas e encampar os projetos contemplem justiça racial e defesa da vida, gênero e sexualidade, direito à favela, justiça econômica, saúde pública, gratuita e de qualidade, educação pública, gratuita e transformadora, cultura, lazer e esporte para todos.
“Queremos ecoar fortemente as bandeiras que a Marielle ergueu com muita bravura e resistência, e hoje sabemos o quão presente e cerceadora é a violência política contra as minorias, violência que ultrapassa os elementos simbólicos e chega a ser letal”.
Tallia denuncia as constantes ameaças de morte contra parlamentares do PSOL e da esquerda. Enquanto isso, o assassinato de Marielle “permanece em oculto, sem que possamos ao menos saber contra que forças estamos lutando”. “Por isso e por todas as demais violências políticas que sofremos diariamente, é necessário resistir”.
‘Mais nenhuma mulher será calada na política’
Marielle Franco foi uma das mulheres trazidas pela política pelo movimento feminista, que começou a crescer no país a partir dos anos 2010. Muitas das mulheres com atuação política hoje são herdeiras do movimento recente de revitalização feminista. A avaliação é da professora de história e vereadora, Laiz Perrut (PT).
O legado de Marielle após sua trágica morte, segundo Laiz, acabou por potencializar esse movimento. “A morte trágica da Marielle foi uma alerta e ao mesmo tempo deu força para que pudéssemos nos colocar e dizer que nenhuma mulher mais seria agredida, que a gente não aceitaria mais violência política contra as mulheres”.
Para Laiz, a ideia da própria Marielle de que seu legado se tornaria semente, de fato, aconteceu. “Ela foi uma das muitas mulheres que se animaram com o movimento feminista, e que, por meio do movimento feminista, ingressou na política. Depois, com sua morte, ela vira inspiração para muitas mulheres. Mais mulheres entraram para a política, para fazer diferente, para reafirmar, como Marielle, que mais nenhuma mulher será calada na política”.
A coragem de quem tem a certeza de estar do lado certo da história
Foi a coragem do enfrentamento, a postura nos embates, a firmeza de Marielle Franco que deu contornos ao fazer política da pedagoga e vereadora de Viçosa pelo PT, Jamille Gomes. “Me marcou muito o dia em que vi o vídeo da Marielle falando com um homem que tentou interromper seu pronunciamento na Câmara do Rio de Janeiro. É essa postura de força que me inspira, de gente que tem segurança de estar do lado certo da história.”
Mas Jamille só veio a tomar conhecimento da trajetória de Marielle após sua trágica morte. “Acordei no dia 15 com a notícia da morte da vereadora do Rio de Janeiro e seu motorista. Aquilo me assustou muito. Era uma mulher jovem, eleita e que fazia um enfrentamento muito importante. Eles a assassinaram.”
Como não bastasse, o ano de 2018 ainda voltaria a assombrar Jamille com a eleição de Jair Bolsonaro com presidente da República. “Sou de uma família que obteve benefícios sociais durante os governos do PT. Estávamos todos assustados, acuados em casa, com medo de sair.”
A situação começaria a mudar nos anos seguintes. Jamille teve uma filha durante a graduação, quando descobriu a ausência de políticas de gêneros dentro das universidades. Desde então, para tentar mudas as coisas, resolveu ir para a luta. “Quando você está em algum movimento, começa a descobrir que as decisões acontecem na esfera política e não há muitas mulheres na política.”
Jamille resolveu se filiar ao PT em 2020, mas achava cedo ainda para disputar algum cargo, porque estava trabalhando sua tese de mestrado. Mas acabou mudando de ideia, se candidatou e foi eleita. Hoje, trabalha para implementar políticas públicas da agenda Marielle. “A política é um ambiente complexo, difícil. Quando se é jovem e mulher, as coisas são mais difíceis. Marielle sabia disso. É preciso seguir.”
‘Marielle foi assassinada justamente por representar a luta das mulheres negras e periféricas’
Adriana Souza é professora de história da rede municipal de Belo Horizonte. Moradora de Contagem, na região metropolitana, é cofundadora e ativista do Coletivo Feminista Com Elas e do Coletivo Esperançar. Os dois grupos, segundo ela, dialogam com uma questão latente depois do “feminicídio político” da Marielle Franco: a necessária emergência das mulheres negras enquanto atrizes do cenário político desse novo ciclo do século 21 no nosso país.
Pré-candidata a deputada estadual, ela trabalha com seus coletivos a premissa de ocupar a política e o poder com as lideranças da periferia: jovens, homens e principalmente mulheres negras e periféricas, que são as maiorias sociais. Adriana lembra que, durante os governos petistas, houve uma maior inclusão das periferias por meio de políticas públicas, mas que agora é preciso aprofundar.
“Depois do golpe e do assassinato de Marielle Franco, que fazem parte da mesma conjuntura política, chegamos em um momento em que as pessoas que foram filhas dessas políticas públicas, que chamamos de filhas da mudança, precisam agora protagonizar e liderar um novo ciclo de mudanças que vai ser mais profundo no nosso país”.
A proposta, segundo a professora, é obter mudanças mais estruturais e mais duradouras, que não sejam facilmente retiradas por outros governos. “Tudo isso tem uma influência muito grande do legado da Marielle, que enfrentou a milícia no Rio de Janeiro, que é uma mulher que é como ela mesma dizia “cria da Maré”, que colocou seu corpo, sua trajetória e suas lutas à disposição e foi assassinada justamente para representar a luta das mulheres negras e periféricas”.
Adriana considera que Marielle representava a ruptura com essa desigualdade gigantesca, com essa invisibilidade da luta das mulheres negras periféricas. “A Marielle deixa um legado de que é preciso ocupar o poder e a política para transformar. É preciso levar para dentro das instituições, historicamente ocupadas pela elite brasileira, aqueles e aquelas que constroem cotidianamente o nosso país, as nossas cidades, que são as populações pobres periféricas e, especialmente, nós mulheres negras que estamos aí, na base dessa pirâmide”.