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Luciana Sagioro: ‘O balé é uma arte elitista, sei que sou privilegiada’

Luciana na “Copa do Mundo de Balé”, o Prix de Lausanne, na Suíça (Foto: Gregory Batardon)

Bailarina. É uma resposta corriqueira quando se pergunta a meninas a famigerada questão sobre o que querem ser quando crescerem – como se fosse uma questão fácil, mesmo para quem já cresceu. Mas aos 8 anos, a juiz-forana Luciana Sagioro Delgado foi além dos estereótipos de gênero presumíveis para garotas e, ao responder que o balé era sua opção profissional, foi desde cedo fazendo escolhas que respaldassem a decisão tomada tão jovem.

Hoje com 15 anos, a juiz-forana é bailarina profissional e coleciona importantes prêmios, o mais recente deles na “Copa do Mundo de Balé”, o Prix de Lausanne, na Suíça, em que conquistou o terceiro lugar geral e o primeiro no voto público pela web.

“Eu me apaixonei desde que comecei o balé, com 3 aninhos. Fui crescendo e continuei estudando, querendo me dedicar mais. Gostava bastante de ver vídeos de bailarinas no YouTube. Foi quando eu achei a Mayara Magri (hoje primeira bailarina do Royal Ballet, em Londres), que estudava na escola onde hoje eu estudo aqui no Rio, trabalhava com a minha mestra. Ela ganhou o Prix em 2011 e eu sonhei muito em ter uma trajetória como a dela”.

O sonho foi se tornando cada vez mais palpável. Ainda criança, Luciana foi morar no Rio com sua então babá, Anna Olívia, que se dispôs a acompanhá-la, já que a vida de seus pais e das duas irmãs estava toda em Juiz de Fora.

“Mas antes disso, meus pais fizeram um teste comigo. Vinha duas vezes por semana ao Rio depois da escola e a condição para eu continuar era que minhas notas escolares fossem boas. Mas apesar de muito cansaço, elas só foram aumentando, porque eu queria muito mostrar que o balé era meu sonho e que aquela era uma grande oportunidade. No espetáculo de fim de ano, os professores procuraram meus pais, falaram que eu tinha talento e dedicação para ser profissional, mas que precisavam de mim no Rio. Tive total apoio dos meus pais, em todos os sentidos, e só assim pude realizar o meu sonho de criança”, conta Luciana.

A próxima parada das sapatilhas é a Ópera de Paris, para a qual Luciana foi convidada a ser integrante pessoalmente pela diretora Élisabeth Platel. A opção por Paris e pela companhia que é o berço do balé clássico significou uma grata e educada recusa de outros convites, a ver: Royal Ballet School; Royal Ballet School Of Antwerp; English National Ballet School; Ballet Academy Munic; Princess Grace Academy; Oslo National Academy Of The Arts e Ballettschule Theater Basel. Uma pirueta pelas companhias mais respeitadas do mundo.

Em sua passagem pelo Brasil antes do início da temporada francesa, a bailarina esteve alguns dias na sua Juiz de Fora natal, foi homenageada pela família, por fãs e amizades e logo retornou à rotina de ensaios na Escola de Dança Petite Danse, no Rio, de onde conversou com O Pharol por videochamada.

Você trouxe da Suíça importantes recordes com apenas 15 anos: Terceiro lugar geral do Prix de Lausanne, primeiro no voto popular e uma bolsa na Ópera de Paris. Como está sendo voltar com essa bagagem?

Era o meu sonho. Quando vim estudar no Rio, tinha um desejo de ir para o Prix. Só que eu sempre soube que é um festival muito fechado, reservado, e muito cobiçado. Pouquíssimos bailarinos são selecionados, então o meu sonho mesmo era ir. Aí eu fui selecionada entre 400 vídeos. Setenta bailarinos foram e eu era uma. Cheguei lá e a gente passou por uma peneira, passaram 20 para a etapa final. Aí eu já estava: “Caraca! Eu?!”.

Aí fiquei entre os sete finalistas e depois consegui o terceiro lugar! Para mim é, assim, muito gratificante e surpreendente! Às vezes, acho que eu ainda nem acredito! Sabe? Quando vou deitar, eu fico: “Será que é real?” Caraca! eu vou pra Ópera de Paris, eu consegui um contrato com uma das maiores companhias de balé clássico do mundo! Eu comecei muito nova, e é muito assustador, mas ao mesmo tempo muito gratificante! Porque eu lembro do sonho da Luciana pequenininha e que hoje ele está sendo conquistado. É muito lindo ver toda a trajetória e ver que não foi uma trajetória fácil, que eu passei por muita coisa, mas que eu realmente consegui chegar ao meu objetivo.

Sua história no balé começou muito cedo. Houve algum momento-chave em que você percebeu que essa poderia ser sua carreira?

Quando eu fui para minha primeira competição em Juiz de Fora, muito nova, eu falei: “Caraca, eu adoro isso, é isso que eu quero fazer da vida, eu gosto de competir”. E meus pais ficaram admirados com isso, eu tinha só 8 anos, e esse desejo foi só crescendo. Fui pesquisando, assistia os vídeos da Mayara e percebendo que o mundo da dança não estava só nas aulas e competições de Juiz de Fora, estava no Brasil, no mundo todo, é um universo muito grande. E quanto mais eu conhecia competições, eu pensava: quero enfrentar isso tudo! Foi assim, com 8 anos. Eu vi que o balé pra mim era mais do que uma diversão.

Você acha que ser de Juiz de Fora impactou sua carreira de alguma forma?

Eu acho que me marcou muito. Juiz de Fora realmente não tem muitas escolas de balé, eu fui da Corpus, e mesmo sendo uma cidade do interior, a gente tem uma qualificação muito boa sim, sabe? Os profissionais de Juiz de Fora foram essenciais e me trouxeram muito bem preparada aqui para o Rio ainda criança. Quando eu vim fazer uma aula, fui elogiadíssima pela minha base sólida, minha técnica. Tenho muito orgulho de representar Juiz de Fora, principalmente por ser uma cidade que as pessoas não conhecem tanto, mas de trazer essa um pouquinho dessa arte, a qualificação e o talento dos nossos excelentes profissionais. Quando ganho algum prêmio, as pessoas me perguntam de onde eu sou e eu gosto de responder, justamente por isso.

A gente vive um momento de ataque à arte e à cultura atualmente no Brasil. Como é representar o país neste contexto?

É muito triste que aqui no Brasil a gente não tenha o apoio que se tem lá fora, não existe mesma quantidade de campos de trabalho para a gente aqui. Temos teatros lindíssimos pelo Brasil, mas que infelizmente não suportam a quantidade de artistas talentosos que a gente tem, porque não existe investimento. Também não valorizam tanto quanto os artistas quanto as companhias no exterior. Eu acho que através da nossa arte, a gente mostra com o nosso corpo o que a gente está sentindo e as palavras não conseguem dizer. E é uma honra poder mostrar que nós somos artistas talentosos mesmo não tendo tanto apoio. Todo artista é persistente, e eu tenho fé que um dia o Brasil vai apoiar mais a arte e a cultura.

Há inúmeras histórias de meninas e de meninos com talento para a dança, mas que não conseguem deslanchar na carreira ou mesmo se tornarem profissionais, muitas vezes por não terem condições financeiras. Você se considera uma privilegiada neste sentido?

Com certeza. Se eu não tivesse o apoio que eu tive dos meus pais e de toda minha família, não estaria aqui hoje. Até brinco com os meus pais que eles são meus patrocinadores, porque realmente só eles sabem de tudo que a gente abdicou para chegar até onde eu cheguei. E além do suporte financeiro, tenho um porto seguro, de saber que qualquer coisa que acontecesse, ou que se eu mudasse de opinião e quisesse largar tudo, teria minha família. O balé realmente não é cor de rosa, há muitas coisas por trás do que se vê. Acho sim, que todo mundo pode ter um lugarzinho especial na arte. Mas realmente o balé é elitista, sim, é uma arte muito fechada. Você vê até pelos padrões físicos que são cobrados na dança. É uma arte muito cara, as aulas, os materiais, tudo! Mas eu acredito que a gente está num caminho de melhora. Acho que todo mundo precisa ser valorizado e que tudo é possível para todo mundo, com oportunidade. Espero que a gente evolua muito nesse critério.

Você vai para a Ópera de Paris, mas você recebeu vários convites para companhias de renome mundial no balé. Como foi sentir esse “Todo mundo quer Luciana”?

(risos) Chegar até no topo e as pessoas reconhecerem o meu talento, pelo que eu faço, pelo que eu me doo para fazer…. é muito, muito, muito gratificante para mim. A Ópera de Paris foi uma escolha minha, porque eu sou apaixonada pelo balé clássico e é uma escola super tradicional, a França é o berço da dança clássica. Foi lá que aconteceram os primeiros indícios de balé clássico no mundo. Atualmente eu vou ser a única brasileira que vai estar na Ópera de Paris e também convidada para estar lá. Então também é muito gratificante representar nosso país.

Com tantas conquistas e tão nova, o que você espera alcançar agora?

Quando eu for contratada pela companhia, tenho muita vontade de criar um projeto para ajudar pessoas que tenham os mesmos sonhos que eu já tive quando era pequena , mas que não têm o apoio que eu tive. Sempre faço doações de materiais como sapatilha, meia calça e outros, porque realmente o balé é uma arte cara, elitista.  E além disso, chegando a Paris vou me doar ao máximo, sugar tudo que puder, porque num futuro ainda distante, quero ser étoile da Ópera de Paris, que é o título supremo concedido a bailarinos da casa, o cargo máximo, o mais cobiçado. É algo ainda distante, mas que eu quero muito e já estou buscando.

Existe um senso comum de associar o balé a uma delicadeza, uma leveza. Mas é uma arte que exige muita força, tanto no sentido físico quanto emocional. Você se incomoda com essa ideia de relacionar o balé sempre ao belo, ao delicado?

Não me incomoda tanto quando as pessoas falam: “Nossa, estava tão linda, tão fofa, tão delicada”. Isso é lindo de ouvir, porque é um elogio. Fico feliz por as pessoas estarem vendo que é uma arte delicada, porque é o que tento passar para o público. Mostrar isso exige sim, muita força e técnica. A gente não vai passar todo aquele terror e a dificuldade do backstage. O balé é realmente muito competitivo. Às vezes, você tem muitos colegas e pouquíssimos amigos com quem você pode contar. É uma arte em que a gente lida com muitos egos. Acho que a preparação física deve andar junto com a emocional. Digo isso por tudo que eu vivi. Lá na Suíça mesmo, muitos bailarinos que eu achava que eram altamente capazes não conseguiram avançar. Essa preparação toda que eu fiz emocionalmente me ajudou demais, e acho que é um pontinho que me faz ficar acima de outras competidoras quando a gente está tecnicamente igual. Porque como eu disse, o balé não é cor de rosa, o balé é beeeeem complicado.

Apresentação no Prix de Lausanne, na Suíça (Vídeo: Malaia Estúdio)