A vida dos outros

Por que mataram Gabriel Pimenta? Por que os assassinos nunca foram julgados?

Gabriel Pimenta foi jurado de morte e assinado após conseguir cassar uma liminar e reverter o despejo de famílias de trabalhadores rurais (Foto: Reprodução)

Gabriel Sales Pimenta foi assassinado às 22h30 do dia 18 de julho de 1982 em Marabá, no sudeste do Pará, por Manoel Cardoso Neto, conhecido Nelito, José Pereira da Nóbrega, vulgo Marinheiro, e Crescêncio Oliveira de Sousa. Os três foram indiciados pela polícia e denunciados pelo Ministério Público por homicídio qualificado. O julgamento se arrastou por duas décadas. Nenhum deles chegou a ser levado a júri popular. Nenhum deles cumpriu pena.

As omissões do Estado brasileiro no julgamento dos assassinos de Gabriel Sales Pimenta serão analisadas nessa terça-feira (22) e quarta-feira (23) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. “O caso se relaciona com a alegada responsabilidade do Estado por suposta situação de impunidade”, diz a Corte Interamericana. Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), “as autoridades não agiram com a devida diligência ou dentro de um prazo razoável”.

A terra

A comunidade de Pau Seco está localizada em Marabá, que integrava o “Polígono dos Castanhais”, uma área pública estadual de quase um milhão de hectares no sudeste do Pará, considerada, então, a maior reserva de castanha no Brasil. Embora fosse habitada e cultivada por trabalhadores rurais posseiros e seus familiares, os fazendeiros e madeireiros Manoel Cardoso Neto e José Pereira da Nóbrega adquiriram, em 1980, o domínio útil de dois imóveis rurais pertencentes ao Estado na região, mas ainda sem demarcação.

Imediatamente, os dois fazendeiros iniciaram a exploração de madeira na área, instaurando um conflito com os trabalhadores rurais. A questão foi levada ao Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins (Getat), órgão federal responsável pela execução da política fundiária na região, que estabeleceu a existência de uma área de 1.201 hectares, dentro da propriedade, considerada devoluta. O espaço foi demarcado e incorporado ao patrimônio da União, possibilitando que os posseiros permanecessem na área.

Insatisfeitos, Nelito e Marinheiro, como eram conhecidos Manoel Cardoso Neto e José Pereira da Nóbrega, ajuizaram uma ação contra os posseiros. Em outubro de 1981, a juíza Ruth do Couto Gurjão, da Vara Penal de Marabá, concedeu uma liminar de reintegração de posse aos fazendeiros sem sequer ouvir os trabalhadores. Os posseiros e suas famílias foram obrigados a deixar a comunidade do Pau Seco ainda naquele mesmo mês. Na ação de despejo, casas foram queimadas, um dos posseiros chegou a ser baleado e a filha de outro teria morrido pisoteada.

O homem

É nesse contexto que Gabriel Pimenta, então com 26 anos, chega a Marabá. Nascido e criado em Juiz de Fora, ele havia acabado de ser formar em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, quando foi aprovado em um concurso do Banco Brasil, sendo designado para Brasília. Ficou lá por pouco tempo. A convite da Comissão Pastoral da Terra, aceitou advogar para os movimentos sociais do campo. Primeiro em Porto Nacional, no estado de Goiás, depois em Conceição do Araguaia, já no estado do Pará, e finalmente em Marabá.

Foi como advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em Marabá, que Gabriel Sales Pimenta defendeu os trabalhadores rurais da região de Pau Seco em litígios contra os fazendeiros Nelito e Marinheiro. Ele e o advogado Benedito Monteiro impetraram mandado de segurança perante o Tribunal de Justiça do Pará contra a reintegração de posse dada pela juíza de Marabá. O argumento era de que a concessão da ordem de despejo sem uma audiência prévia para ouvir os trabalhadores representava um ato ilegal e abusivo.

O desembargador acatou o recurso. Em dezembro de 1981, os posseiros retornaram a Pau Seco. Por essa atuação, Gabriel Pimenta ficou conhecido como o primeiro advogado na história de Marabá a conseguir cassar uma liminar que havia permitido a expulsão dos posseiros de terra em uma área reivindicada por fazendeiros. A audiência para julgar o mérito da ação foi designada para o dia 4 de agosto de 1982. Segundo relatos de várias testemunhas, Nelito e Marinheiro juraram que até essa data matariam Gabriel Pimenta.

A luta

18 de julho de 1982. No início da noite, Gabriel Pimenta ajudou a organizar a convenção do PMDB de Marabá. Terminado o evento, na companhia do casal Edson Rodrigues Guimarães e Neuzila Cerqueira Guimarães, foi ao bar “Bacaba”. Próximo das 22h30, quando os três deixaram o local e foram caminhando até onde estava estacionado o carro, passaram por um fusca parado na estrada. Edson relatou no inquérito ter ouvido alguém dizer: “É o alto”. Nesse momento, um homem soltou de dentro do fusca e disparou contra Gabriel Pimenta. Após três tiros à queima-roupa, o atirador retornou ao veículo, que desapareceu em alta velocidade.

A grande repercussão do assassinato elevou a pressão em Marabá. O inquérito policial foi iniciado no dia seguinte, 19 de julho de 1982, com as autoridades policiais realizando diligências e tomaram depoimento de testemunhas e suspeitos. As investigações apontaram Manoel Cardoso Neto (Nelito) e José Pereira de Nóbrega (Marinheiro) como os autores do assassinato de Gabriel Pimenta.

Os depoimentos de testemunhas indicaram que os acusados haviam explicitamente ameaçado matar “aquele advogado” até o dia 4 de agosto de 1982. Nelito havia comprado um fusca na véspera do assassinato, e pistoleiros do seu convívio foram reconhecidos por testemunhas quando passaram em frente à casa de Gabriel dizendo: “A casa do homem é esta”. Outra testemunha identificou Marinheiro como motorista do fusca no dia do crime.

Com o relatório do inquérito pronto, novas evidências apontaram Crescêncio Oliveira de Sousa, conhecido como um dos pistoleiros de Marinheiro, como o autor dos disparos. O delegado responsável aditou o inquérito e indiciou Crescêncio em setembro de 1982. Outro suspeito de ser o autor de um dos disparos, Antônio Vieira de Araújo, vulgo “Ouriçado”, chegou a ser investigado, mas, sem evidências suficientes, não chegou a ser indiciado.

Nelito e Marinheiro foram detidos no dia 20 de julho de 1982. Crescêncio não foi localizado. Levados para o quartel da Polícia Militar como medida de segurança, os dois presos foram transferidos para Belém em seguida. Quando eles ainda se encontravam encarcerados, o delegado enviou representação para a Vara Criminal de Marabá solicitando a custódia preventiva de ambos. O promotor do caso manifestou-se favorável. Os advogados, no entanto, impetraram um habeas corpus no Tribunal de Justiça do Pará solicitando a soltura da dupla.

Em 28 de julho de 1982, a juíza Ruth do Couto Gurjão decretou a prisão preventiva de Nelito e Marinheiro. Três dias depois, em 31 de julho de 1982, antes do julgamento do habeas corpus impetrado por seus advogados, a mesma juíza anulou o despacho e expediu um alvará de soltura em face do “surgimento de fatos novos”, sem especificar, contudo, quais seriam esses fatos. Mais tarde, Paulo Sette Câmara, secretário de Segurança Pública do Estado do Pará, disse em entrevista que havia forte “pressão política” para que o acusado Nelito fosse solto.

O tempo

A pressão política a favor de Nelito no Pará vinha de Minas Gerais. Aqui, seu irmão, Newton Cardoso, havia sido prefeito de Contagem e era deputado federal na época dos acontecimentos. Mais tarde, ele seria eleito governo do estado e vice-governador, na chapa com Itamar Franco.  A “tal pressão” política a favor de Nelito, presente nas semanas seguintes ao assassinato de Gabriel Pimenta, será uma constante durante todo o processo.

Quando em dezembro de 1983, após receber a denúncia criminal do Ministério Público ofereceu em face de Marinheiro, Nelito e Crescêncio, a juíza Ruth do Couto Gurjão da Vara Criminal de Marabá marcou interrogatório, mas apenas primeiro compareceu, mas não teve sua prisão decretada. Apenas no ano seguinte, quando o juiz Eronides Sousa Primo assumiu o caso, as prisões foram decretadas. Crescêncio se apresentou, negou envolvimento e teve mandado de prisão revogado.

A partir daí, iniciou-se uma série de tentativas de audiências para interrogar os outros dois acusados. Todas fracassaram sucessivamente. Nesse período, três escrivães e dois tabeliães do cartório foram afastados por envolvimento com Marinheiro. Em 1987, o advogado de Nelito disse que seu cliente não compareceu às audiências por falta de recursos. Ele seria interrogado somente em abril de 1988. Depois, começaria outra longa fase: a inquirição das testemunhas. Mais uma vez, as audiências foram marcadas e remarcadas várias vezes.

Em maio de 1992, começou a contar o prazo para a apresentação das alegações finais. O Ministério Público alegou haver indício para levar Nelito e Marinheiro a júri popular. Quanto a Crescêncio, não houve material probatório suficiente. A defesa de Marinheiro apresentou suas alegações finais em dezembro. Já o advogado de Nelito, quase um ano depois, protocolou pedido de desistência nos autos sem apresentar alegações finais. Dois anos e meio depois, um defensor público foi nomeado para atuar na sua defesa.

Em abril de 1996, no entanto, a Defensoria Pública solicitou sua desistência da defesa do acusado, com o fundamento de que ele era fazendeiro e teria recursos para constituir advogado. Nelito, por sua vez, insistiu com a tese de que não possuía recursos para a contratação de um advogado. Apenas em junho de 1997, sua defesa apresentou as alegações finais. E, em abril de 1998, foram apresentadas as alegações de Crescêncio, finalizando o processo.

Marinheiro foi morto em um crime de encomenda em agosto de 1999. Um ano depois, foi declarada extinta sua punibilidade. A denúncia também foi julgada improcedente em relação a Crescêncio por falta de provas. Ele também seria morto em circunstâncias ainda hoje desconhecidas. Apenas Nelito iria a júri popular. Na sentença de pronúncia, o juiz reconheceu que, “pelas provas contidas no caderno processual, este juízo está convencido da existência do crime e de serem os denunciados Manoel Cardoso Neto (Nelito) e José Pereira da Nóbrega (Marinheiro) os seus autores”.

Entre janeiro e maio de 2001, Nelito foi intimado três vezes para tomar ciência da sentença de pronúncia que, em 7 de janeiro de 2002, transitou em julgado. A sessão do Tribunal do Júri foi designada para o dia 23 de maio de 2002, mas não pôde ser realizada por conta do desaparecimento do réu. Outras sessões foram marcadas nos quatro anos seguintes e em nenhuma delas Nelito compareceu.

Em fevereiro de 2006, foi composta uma equipe de três agentes da Polícia Federal para localizar Nelito na Bahia ou em Minas Gerais e dar cumprimento ao mandado de prisão. No dia 3 de abril de 2006, a Polícia Federal conseguiu prendê-lo em Pitangui, na região central de Minas, em uma das 63 fazendas do seu irmão, Newton Cardoso. Em 27 de abril, foi designada a realização do julgamento pelo tribunal do júri.

A defesa de Nelito, no entanto, ingressou com habeas corpus perante o Tribunal de Justiça do Pará requerendo a concessão de prisão domiciliar ou a extinção da punibilidade baseada na prescrição. A alegação era de que o acusado não havia fugido, mas apenas não atualizou seu endereço, e a Justiça não utilizou todos os meios a seu alcance para a rápida localização. Quanto à extinção da punibilidade por prescrição, a defesa defendeu a redução do prazo pelo fato de que, na data da sentença, o criminoso era maior de 70 anos.

Em maio de 2006, o pedido de decretação da extinção de punibilidade pela prescrição foi indeferido pelo juiz de primeira instância da Vara Criminal de Marabá. No entanto, em 8 de maio de 2006, as câmaras criminais reunidas do Tribunal de Justiça do Pará emitiram decisão contrária, declarando extinta a punibilidade do crime imputado a Nelito, determinando o trancamento da ação penal e sua imediata soltura. A decisão foi publicada no dia 18 de maio de 2006.

A justiça

A Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Pará recebeu uma representação, em 2007, pedindo investigação contra os magistrados que atuaram no processo, que tramitou por mais de 20 anos e resultou na prescrição do caso. O pedido foi indeferido e arquivado. No mesmo ano, os advogados da Comissão Pastoral da Terra apresentaram denúncia perante o Conselho Nacional de Justiça, alegando demora no andamento do processo, o que também foi indeferido em 2008. Por fim, o caso foi parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Em abril de 2008, Maria da Glória Sales Pimenta, mãe de Gabriel, ajuizou uma ação de indenização por danos morais em face do Estado do Pará por conta da morosidade na tramitação do processo criminal e a consequente impunidade pelo assassinato do seu filho. A juíza Maria Aldecy de Sousa, da 3ª Vara Cível da Comarca de Marabá, julgou a ação procedente e condenou o Estado do Pará, a pagar uma indenização de R$ 700 mil.

O Estado do Pará recorreu da decisão junto ao Tribunal de Justiça, que deu provimento ao recurso e indeferiu o pagamento da indenização. Os familiares de Gabriel interpuseram recurso ao Superior Tribunal de Justiça e depois na Suprema Corte brasileira. Maria da Glória de Sales Pimenta faleceu em 20 de setembro de 2016, sem conseguir uma vitória na Justiça.

A ação contra o Estado brasileiro envolvendo o caso de Gabriel Pimenta chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 9 de novembro de 2006. Ela foi encaminhada pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), com argumento de “suposta violação do direito à vida, à segurança e integridade pessoal; do direito à justiça e do direito de associação”.

Rafael Pimenta, que é irmão de Gabriel, explica que sua família pleiteia medidas de reparação. “Que o Estado brasileiro seja condenado a criar protocolos para garantia da vida dos protetores de direitos humanos e, caso venha a ocorrer morte, que seja dado celeridade aos processos”.

Em uma de suas falas iniciais no primeiro dia audiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos, nessa terça-feira (22), Rafael considerou a redução da morosidade processual no Brasil, nas esferas penal e civil, como “a coisa mais importante a se alcançar com o julgamento.”

Do ponto de vista simbólico, a família Sales Pimenta requer que seja determinado ao Brasil que escolas em Juiz de Fora, onde Gabriel nasceu, e em Marabá, onde foi morto, recebam seu nome. Da mesma forma, uma escola com o nome Nelito, no interior da Bahia, também deve mudar sua denominação para Gabriel Sales Pimenta.

Nessa quarta-feira (23), segundo dia de audiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos, houve manifestação da Advocacia-Geral da União.

Publicidade