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‘Um dia ainda vai se jogar futebol na Ucrânia’

Jogadores ucranianos do FC Start (Foto: Wikimedia Commons)

É comum ao ser humano guardar objetos. Na infância, guarda-se, incentivado pelos pais, para evitar gastos futuros e para aprender o valor das coisas. Na idade adulta, guarda-se o que vai ser de uso prático e imediato – vô José Alves guardou até o fim da vida suas varas e anzóis (pois pescava e comia, todo santo dia, com angu, os lambaris que tirava do Rio Doce, muito antes da contaminação) e seu canivete (para fazer um “controle de qualidade” do fumo de rolo que plantava, colhia, curtia e vendia).

Na Ucrânia invadida pelos nazistas, em 1941, século passado, Makar Goncharenko guardou suas chuteiras, com a singela justificativa de que “um dia ainda vai se jogar futebol na Ucrânia”, mesmo sabendo que disputar uma partida oficial naquele cenário era algo bastante improvável. Antes da invasão nazista ele integrava o Dínamo de Kiev, o melhor time da Ucrânia, dissolvido com o avanço da guerra. Alguns jogadores, então, se juntaram para formar o Time da Fábrica de Pão, posteriormente rebatizado de FC Start.

Consta que era um ótimo time, quase imbatível. Os invasores também tinham o seu time de futebol, o Flakelf, e igualmente tido como um bom esquadrão, capaz de rivalizar com seus contemporâneos europeus. Nada mais natural então que, mesmo em um cenário de devastação, numa tarde de um domingo qualquer Start e Flakelf se enfrentassem em torno de uma bola. Aconteceu uma primeira vez, com a vitória dos ucranianos: 5 a 1; e uma segunda vez, de novo com o triunfo dos atletas de Kiev: 5 a 3.

Foi antes e durante esta segunda partida que a arrogância de um coronel nazista elevou os jogadores do Start ao panteão de heróis realmente invencíveis, no campo da bravura e das lendas. Ele primeiro exigiu que os atletas ucranianos fizessem a saudação nazista antes do jogo – no que foi ignorado; e depois, no intervalo da partida, preocupado com o aumento da autoestima do povo subjugado em caso de uma segunda vitória futebolística, ordenou que os jogadores da Ucrânia “entregassem a partida”, se deixassem vencer pelo Flakelf – no que foi desobedecido.

Desde o fim da Guerra, em 1945, essa história vem sendo contada de diversas formas, com alguns exageros. Para toda uma geração de torcedores ficou de forma quase indelével na memória um heroísmo exacerbado dos jogadores ucranianos, depois que a Revista Placar publicou, em meados da década de 70, século passado, uma reportagem sobre a história garantindo que os “onze atletas foram fuzilados logo após a partida, pela ousadia de ter vencido os nazistas”.

A verdade sobre os jogos entre Start e Flakelf e suas brutais consequências só foi esclarecida com “Futebol & Guerra”, o espetacular livro do jornalista esportivo Andy Dougan, que revirou os arquivos, ouviu sobreviventes e colocou os fatos na dimensão correta, e ainda espetaculares: os nazistas ficaram realmente bastante irritados com a humilhação sofrida no campo futebolístico e, uma semana depois da derrota, prenderam os onze jogadores rivais, por “sabotagem”.  No vigésimo dia, um desses jogadores morreu sob tortura, acusado de ser um “agente infiltrado do governo soviético”. Os demais foram enviados ao campo de concentração de Siretz – onde três jogadores foram executados, seis meses depois das partidas, por, na versão oficial, “tentativa de fuga”.

O livro de Dougan começa com uma festa de casamento, avança para o trabalho e o esporte, traduz a alma dos orgulhosos ucranianos, mapeia a Kiev ocupada pelos nazistas e, mais importante, se detém nas pequenas histórias de homens que guardam objetos que podem ser úteis – como a do padeiro Makar Goncharenko e suas chuteiras de jogar futebol.