Segundo os dicionários, soberba é o sentimento de superioridade em relação ao outro; comportamento de pessoa arrogante, presunçosa, prepotente; é a sobreposição de algo que se encontra em lugar inferior. Em resumo, é o contrário de humildade e talvez seja uma das palavras que mais definem o estado atual das coisas/pessoas/lugares/fatos no Brasil. Competições esportivas, campanhas eleitorais, disputas pelo domínio de deus, discussões sobre realities e militâncias asfixiantes, entre outros, retratam de forma fidedigna nossa miopia e hipermetropia, que, quando próximos, nos impedem de enxergar de perto, e quando distantes, nos abalam a visão de longe.
No esporte, além de soberbos, somos hipócritas. Basta que apareça algum atleta vitorioso para nos tornarmos apaixonados pela sua modalidade, seja tênis, hipismo ou ginástica. No fundo, sequer conhecemos as regras. Gostamos mesmo é de dizer que somos os melhores até não sermos mais. No futebol, há menos desconhecimento e, por isso, mais arrogância. O sorteio da Copa nos mostrou locutores e comentaristas no clima do “já ganhou”, após conhecerem os adversários da seleção. Da euforia de Galvão a manchetes ufanistas, a prepotência estava ali estampada. Somos incapazes de enxergar o potencial do outro; às vezes até exaltamos as virtudes do próximo a ser derrotado por nós, mas nunca cogitamos a outra possibilidade.
E nada é diferente no campo religioso. A “minha igreja”, o “meu deus”, está acima de tudo, de todos. Acreditamos que entre os milhares de deuses adorados em todo o mundo, o nosso é o único, incontestável. Religiosos que se acham superiores como indivíduos por conviverem com seguidores de outras crenças ainda se abalam com os ateus. Fiéis que frequentam ritos semanais de sua igreja se sentem acima daqueles que não estão lá com tanta assiduidade. Sentimo-nos anjos ungidos de bondade quando fazemos doações, mutirões, para os mais necessitados, em alguma tragédia, data ou ação pontual, mas vamos contra toda e qualquer ideia de política pública de distribuição de renda permanente, que nos tiraria o status de benfeitores.
Na política, o clima de vitória antecipada está em todas as tendências. A turma que se intitula “do bem” sente-se à vontade para apoiar os atos mais bárbaros, todo o horror que já conhecemos, com a certeza inabalável da impunidade. Do outro lado, uma postura irritantemente blasé. Enquanto a extremíssima direita deita e rola com o uso das novas tecnologias e espalha suas ideologias (a)morais e mísseis virtuais pela web, dark e deep web, universos e metaversos, telegrans e quetais, no campo à esquerda ou mesmo de centro-esquerda, há apenas, com boa vontade, uma atuação tímida e dispersa nestas novas áreas de interação.
Nos últimos anos, os progressistas assistiram passivamente à simbiose entre herdeiros da elite e do pensamento escravocrata, milicianos, neopentecostais, militares, neonazistas e aloprados de todo o tipo para sequestrarem narrativas, apoios e votos. Em resumo, a construção de um arsenal potencialmente letal em todos os ambientes da vida pública. Hoje, embora muitos não queiram enxergar, o Frankenstein não está entregue, ele se mantém na disputa e é muito mais do que uma pessoa ou grupo, mas um movimento consistente, pragmático e conectado a todos os sistemas de influência coletiva e individual. Todos.
Está na Barra, nas periferias, nos morros, nas favelas, nos grandes templos universais e em cada portinha de garagem transformada em igreja de domesticação de fiéis prontos para vociferar as interpretações mais estranhas dos mandamentos de seu deus. Enquanto isso, o que deveria ser oposição permanente, com ações efetivas, aperfeiçoou-se em publicar belas notas de repúdio, sem qualquer efeito no campo institucional, além de memes e hashtags previsíveis nas redes antissociais. Mais que isso, parece já comemorar a vitória no primeiro turno nas próximas eleições, euforia derivada da visão analógica de seus marqueteiros, estacionados nos anos 1990.
Nas arenas digitais, transbordadas para o mundo real, e não o inverso, estamos em bolhas que se dividem em outras bolhas, que se subdividem, e assim sucessivamente, até todas se desmancharem em lugares diferentes e dialetos inventados. Durante todo este tempo, parte considerável do campo progressista não entrou naquelas igrejas, não subiu o morro, não dialogou com quem nunca pisou numa universidade, não ouviu, não enxergou, não quis entender os planos dos deuses vendidos para as periferias. Falou apenas para seus pares, militantes com padrões militares, a quem detonou e por quem foi detonada.
Hoje grupos e subgrupos se digladiam por tudo e por nada, e todos creem numa vitória que não está posta. Nesta esperança caótica, cada vez mais suportamos menos aqueles – mesmo colegas de trincheiras – que criticam nossos dogmas e expõem ressalvas insuportáveis aos nossos ouvidos. Assim, soberbamente, nos contentamos com nossos espelhos. Como em torcidas de realities, vamos brincando de apontar o dedo na cara dos “inimigos” mais próximos e destilar discursos eloquentes para recriminar aqueles que, supomos, votam diferente, ou mesmo votam igual por motivos diferentes. Do alto de nossa prepotência, negamos qualquer problema de visão, recusamos exames, dispensamos novas lentes, não queremos colírios. Seguimos no meio da noite, usando belos óculos escuros, tateando velhos precipícios.