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O beijo mais comum da História

Ruth Rocha é importante pra várias gerações de leitores, e seria errado dizer que apenas pra leitores iniciantes. Seus livros encantam os pequenos e fazem refletir os adultos e é com uma dessas histórias que se tem o retrato do país narrado de novo.

Sapo-vira-rei-vira-sapo foi publicado em 1982, quando o Brasil ouvia os últimos suspiros de uma ditadura. A história é simples e fácil de contar. Parte da premissa de um sapo beijado por uma princesa: se torna um príncipe. Esse conto de fadas serve de metáfora pra várias situações, como da época da escrita ou de hoje.

A princesa brincava com a bola de ouro e deixou que ela rolasse até o riacho. Sem saber como buscar o tesouro, aceita a proposta do sapo: busco se me der um beijo. Promessa feita e cumprida, o sapo virou príncipe, casou-se com a princesa e assumiu o trono quando o rei morreu.

Até aqui temos o golpe. Muita gente acreditou que o sapo (este não era barbudo, antes que alguém mude a proposta) viria pra melhorar tudo naquele reino. Antes tinha roubalheira, ameaça comunista, crise institucional. Um lugar fraco, carente de liderança e de respeito. O novo rei instaurou tudo isso, acreditaram por aí.

E o rei, sem saber reinar, criava umas leis que assustava a população pelo nível de insanidade. Uma delas parece até coisa de astrólogo: “As pessoas que respondem pelo nome de Arthur passam, de agora em diante, a responder pelo nome de Zoroastro.” E havia também os impostos, lá e cá; tudo cada vez maior, por um bem maior.

Pelo menos o rei que era sapo na história de Ruth Rocha teve uma lei que poderia ter sido boa por aqui: “Nos meses cujo nome tem a letra R está todo mundo proibido de sair de casa, que é pra não gastar a sola do sapato.” Aqui foi sempre um cada um por si e seguimos assim, só que piores.

O povo do reino começou a dizer verdades. Onde estavam essas verdades antes, quando o rei assumiu, a história não conta. Só que o rei ficou preocupado com essas verdades que circulavam cada vez mais, e se escondiam quando eram caçadas. Ele queria permanecer no poder, por isso mandava os guardas apreenderem as verdades, encontradas nas ruas ou debaixo das camas, dentro dos armários.

As verdades estão, muitas vezes, diante dos olhos das pessoas, mas é como a história do outro rei, o que desfilou nu pela cidade: há quem veja o que está diante dos olhos, há quem imagine pompas e circunstâncias. E o rei sapo, mais nu do que a sensatez era capaz de tolerar, mas ainda em pele de asno como gostam tantos outros, seguiu perseguindo verdades.

A cada dia, novas verdades surgiam. A solução? Prender quem dizia as verdades. Muitos foram perseguidos, enclausurados, torturados e até desaparecidos porque o governo não sabia lidar com as verdades que eles diziam. Esse mesmo governo começou a sucatear a máquina produtora de lentes da verdade, que permitiriam às pessoas ver a nudez do rei: a educação passou a ser controlada.

Menos trabalhoso do que caçar verdades e prender pessoas, é construir muros que separem verdades de crenças. No entanto, verdades pulam muros e se esgueiram por onde são indesejadas. Há quem se incomode e queira matá-las, mas aos que não conseguem fazê-lo com rapidez elas tocam. O toque da verdade não é sutil: faz rachar as paredes do palácio e os tijolos do muro. Mais verdades entram e o rei sai.

São muitos sapos no mundo e muita gente acredita neles. Bichinho tão inocente, né? Só pula (de paraquedas) e coaxa (asneiras). E se reproduz.

Mas não se iludam vocês

Com a alegria do cortejo,

Pois a história se repete,

Como se fosse um gracejo.

Lá vai um sapo na estrada,

Procurando seu desejo:

Encontrar uma menina,

Que queira lhe dar um beijo…

Aos que já beijaram sapos, escovem os dentes e estudem higiene coletiva. E matem os girinos.