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Quem soltou pum no elevador?

Quem frequenta elevadores sabe que, com máscara ou não, se há pum, há cheiro. De pum ou outras origens, como comida, suor, perfume ou lixo. Quem entra no elevador depois dos portadores desses odores recebe o rescaldo. Quando viaja junto fica mais interessante.

Na comida, o cheiro deixa o curioso pensando no arroz com feijão, no tempero da carne, no que mais acompanha o estrogonofe. No caso do lixo a mesma coisa, em sentido contrário (eca, laranja podre! eca, cocô de cachorro! eca, resto de…blarg!). Suor e perfume vêm com um franzir de nariz que a máscara oculta e que só não acontece pra quem gosta de perfume e quem gosta de suor. Sim, há quem goste.

No caso do pum, é melhor pensar em Agatha Christie. Se são só duas pessoas no elevador, não tem graça, fica fácil achar o culpado, porque ele ou ela tem cara de culpa. Com três ou mais pessoas no elevados a história fica mais interessante, tem troca de olhares, encenações, blefes e o alívio da porta aberta é mais forte pra cada um que não foi declarado culpado.

Uma das sequelas da Covid é não poder brincar de Agatha Christie no elevador. Não pra todo mundo que foi contaminado, mas pra alguns, que ficam sem olfato ou paladar por algum tempo ou por muito tempo, ou que ficam sem muito paladar e olfato por pouco tempo e não recuperam tudo depois.

Existem outras sequelas, até pra assintomáticos, já que os impactos cardiovasculares são notórios e meses depois de estar tudo aparentemente curado a pessoa pode pifar. Pifar = morrer. Na estatística entra Covid?          

As atividades do mundo não podem parar, mas há uma diferença entre escolher quais riscos correr e escolher correr riscos. E há quem não tenha escolhas, que nem em 2020, nas duas semanas mais ou menos em que as pessoas entenderam que deveriam se isolar do mundo pra conter o vírus (e talvez tivesse funcionado), puderam parar de trabalhar, de andar na rua, de pegar ônibus cheio, de conversar com pessoas em espaços de ventilação limitada.

Escolher que riscos correr é voltar a trabalhar com pessoas ou perder o emprego, o salário, o sustento da família. É entender que o encontro presencial efetiva uma atividade que seria postergada ou cancelada em reuniões on-line. É equilibrar sobrevivências, em diversas instâncias, sem tirar tensão, cuidado e preocupação. É encontrar pessoas específicas que fazem a vida valer a pena e a vontade de lutar pra que ela se perenize seja reforçada pelos cuidados.

Escolher correr riscos é pular sem saber se a rede está lá. Pode ser que esteja, mas a sorte tem cota limitada e, quando ela não está, o resultado pode nem aparecer no teste, mas no tempo.

Escolher correr riscos é desconsiderar o cheiro de café vindo da cozinha quando o cobertor ainda está quente.

Escolher correr riscos é não fazer questão do bolo assando no forno da vó.

Escolher correr riscos é comer filé, lasanha ou queijo na chapa com cheiro de água.

Escolher correr riscos é largar mão do cheiro de chuva quando ela vem, quando ela cai e quando e se foi e deixou a lembrança.

Escolher correr riscos é apagar lembranças, porque o olfato é responsável por grande parte delas.

Escolher correr riscos, ação limitada por si, é escolher limitar os horizontes do mundo.

Escolher correr riscos é arriscar as chances de quem nunca sentiu essas sensações, de café, de vó, de bolo, de chuva, de lasanha, filé ou queijo, de bosta de vaca, de amor eterno, de mãe. As crianças não se vacinaram, as pequenas, e estão sujeitas ao que o mundo pode lhes oferecer. Se o mundo escolher que elas precisam ter Covid, é essa a oferta.