Começamos a semana com uma notícia devastadora: uma mulher foi abusada sexualmente por um médico anestesista durante a cesárea, durante o nascimento do seu filho.
É preciso dizer antes de mais nada que o crime, ocorrido no Hospital da Mãe no Rio de Janeiro, é de inteira responsabilidade do estuprador Giovanni Quintella Bezerra. Mas infelizmente não é um fato isolado cometido por um psicopata.
Existe todo um sistema estrutural, cultural e social misógino que serve de terreno fértil para esses e outros abusos cometidos contra as mulheres no momento do parto, que deveria ser de total respeito e acolhimento.
Precisamos falar sobre alguns aspectos fundamentais nesse caso terrível.
No Brasil inúmeras cesáreas são realizadas sem necessidade e contra o desejo da mulher. A Organização Mundial da Saúde indica 15% de cesáreas ao ano como uma taxa razoável, mas aqui registramos 55% de cesáreas considerando SUS e saúde suplementar. Não sabemos se a cesárea foi necessária, mas é possível que tenha sido mal indicada. Se foi desnecessária, essa foi a primeira violência que a vítima sofreu.
A Lei do Acompanhante estava sendo descumprida. O hospital diz que garantiu a presença do acompanhante e que a violência aconteceu depois que ele saiu da sala de cirurgia. Mas a lei garante a presença do acompanhante em todo o processo do pré ao pós nascimento. A ausência do acompanhante foi a segunda violência sofrida pela parturiente.
O hospital alega que o acompanhante se afastou da mulher para acompanhar o bebê. Temos vastas e robustas evidências científicas sustentando que não há motivo para separar mãe e bebê no pós parto, a não ser que o bebê precise de cuidados especiais, o que não aconteceu. Mãe, bebê e acompanhantes separados após o nascimento foi a terceira violência ocorrida.
A mulher foi sedada. Procedimento totalmente desnecessário na grande maioria das cesáreas e que ainda aumenta a chance de alguns riscos. Chamou atenção da equipe de enfermagem justamente o fato do anestesista estar usando sedativos em excesso e dopando as pacientes sistematicamente. Essa foi a quarta violência que a mulher sofreu.
Da entrada na maternidade até o nascimento do filho, a mulher sofreu no mínimo quatro violências obstétricas antes do estupro. Violências institucionais que facilitaram o abuso.
O que precisamos reforçar é que essas e tantas outras violências obstétricas acontecem todos os dias no Brasil. Um sistema em que médicos, com raras exceções, exercem seus podres poderes com respaldo institucional e praticam toda sorte de procedimentos desnecessários e abusivos.
Sem falar no corporativismo médico que também contribuiu para facilitar o abuso. Por que os obstetras presentes não questionaram a sedação? O CRM que agora se pronuncia lamentando o caso, é contra as doulas, contra o plano de parto e contra as leis sobre violência obstétrica. Alegam que os médicos não podem ter suas liberdades de atuação violadas. Legitimam o exercício do poder médico acima de tudo. E as mulheres seguem sendo violentadas livremente.
Doulas, enfermeiras, ativistas e obstetras do movimento pelo parto respeitoso estão denunciando violência obstétrica há anos, enfrentando dificuldades legais, institucionais, burocráticas, sociais e culturais.
Em Juiz de Fora existe lei das Doulas desde 2016 e ainda hoje registramos casos de doulas proibidas de entrar em maternidades ou em cesáreas.
E há quem diga que basta se informar e fazer um bom plano de parto para parir com respeito. Esse fato nos mostra que a culpa nunca é da vítima, que não basta se informar, não basta ter plano de parto.
É importante que mulheres e acompanhantes tenham acesso à informação e se fortaleçam para exigir cumprimento da lei e negar procedimentos violentos. Mas estamos falando de um contexto extremamente delicado e de vulnerabilidade. Fora o medo sempre presente de reagir e sofrer retaliação.
Precisamos lutar para que as mudanças sejam feitas no sistema, com respaldo institucional, fiscalização, formação continuada, investimento, denúncia. Com protocolos que dificultem a violência ao invés de favorecê-la.
Nesse caso horroroso, tivemos a mobilização de enfermeiras e técnicas para fazer a denúncia. Chama atenção que tenham se mobilizado para filmar e não para interromper o ato. Mas parece que foi uma medida desesperada para conseguir a prisão em flagrante. De outra forma talvez não tivesse conseguido levar o caso adiante, pois são o elo mais fraco da instituição.
O que não podemos perder de vista é o contexto de institucionalização e banalização da violência obstétrica que serviu de cenário perfeito para a cena do crime.