ATO I, cena 1
Antes de me mandarem ir para Cuba, eu fui. Carnaval de 2011, sete dias: um para ir, outro para voltar, cinco deles divididos ao meio entre um resort em Varadero e o centro de Havana. No livro Não-lugares, o antropólogo e etnólogo Marc Augé se refere a espaços transitórios demais para possuírem significado suficiente para serem definidos como “um lugar”. Um aeroporto, um supermercado, um shopping center. Passei dois dias e meio no lugar chamado Cuba. Já um resort, ainda que de frente para o mar do Caribe, é um resort em qualquer lugar do mundo. Na volta, um desvio no voo e uma conexão de algumas horas em São Paulo até seguir na ponte aérea para o Rio de Janeiro. Conheci São Paulo sentada no chão do aeroporto de Congonhas. São Paulo é cheia de lugares e não lugares, mas só descobri depois.
Cena 2
Um mês depois de eu voltar de Cuba, minha mãe comemorou 50 anos numa festa ao ar livre, num clube de Juiz de Fora. Tem uma foto bonita desse dia que mostra meu padrasto dando a ela, com um palitinho, na boca, um medalhão de quiabo que tinha acabado de sair da churrasqueira. Tenho um carinho imenso por essa foto. Bastou mais um mês para que ele fosse diagnosticado com um melanoma, metástase cerebral, sem cura.
Gustavo Burla (colunista de O PHAROL e companheiro de tantas jornadas) e eu tínhamos uma viagem de férias marcada para Edimburgo, que não faria escala em São Paulo. Desmarcamos, porque um mês inteiro é impensável quando alguém que você ama, em algum momento, vai morrer. Quer dizer: todo mundo que você ama, em algum momento, vai morrer, mas é diferente quando a pessoa realmente vai. Quando, com o laudo médico, alguma coisa dela já morreu.
Cena 3
Edimburgo virou hotéis desmarcados e passagem não reembolsada. Em vez disso, catei meus irmãos então adolescentes, para tirá-los um pouco daqui, e viajamos por uma semana. Conheci São Paulo pelo quarto de um hotel barato de uma grande rede, um exímio não-lugar com endereço na Consolação. E conheci São Paulo por muitos outros lugares: pela beleza da Estação da Luz e pela delicadeza do Museu da Língua Portuguesa; pelo entusiasmo do meu irmão mais novo no Museu do Futebol; pelo sabor dos caquis mais doces que já provei, quase tão doces quanto o olhar daqueles meninos de 13 e 16 anos prestes a perder o pai.
Quatro caquis, oito ameixas, um punhado de cerejas. O embrulho pronto, o preço, meus olhos cheios de lágrimas. É, conheci São Paulo pelo golpe das frutas no Mercado Municipal.
ATO II, cena 1
São Paulo virou rotina quase mensal em 2013, quando mudei de emprego. Mas eu via São Paulo sem ver São Paulo. De vez em quando, um quarto de hotel em Bela Vista e uma cerveja noturna num botequim quase na esquina. Na maioria das vezes, porém, saía do Terminal Rodoviário Miguel Mansur às 11 da noite, passava sete horas num ônibus leito, desembarcava na capital paulista, seguia para uma reunião de dia inteiro na Vila Clementino e, no fim da noite, a sequência inversa era rodoviária-sete horas de percurso-rodoviária. Conheci São Paulo pelo Terminal Tietê. Não sei se Marc Augé conceituou isso, mas, em vez do não lugar do quarto de hotel, enfrentava o “entre-não-lugares”, de um terminal a outro, do ônibus interestadual.
Cena 2
Na noite de 20 de junho de 2013 eu estava no ônibus que acabara de partir de São Paulo, voltando para Juiz de Fora depois de uma dessas reuniões. As sete horas previstas se tornaram 13, metade das quais parada numa Via Dutra fechada por manifestantes. E então conheci São Paulo pela estrada que lá chega e que de lá sai, embora, naquela noite, ninguém conseguisse chegar ou sair. Acompanhei as notícias pelo celular, até acabar: primeiro o sinal, depois a bateria. As notícias não. Em algum lugar da minha linha do tempo numa rede social continua postado: “Alguém me explica?”. Lá do Rio de Janeiro, minha amiga Juliana Prado — jornalista, poeta talentosa e minha ex-editora no jornal Tribuna de Minas — me deu a mão: “Estou atônita”. Foi um alento, porque a Jú sempre me explica as coisas. Quando não explica, sente o inexplicável comigo. Estávamos. Atônitas, digo. Tontas. Já em vertigem, embora a diretora Petra Costa só fosse dar nome ao nosso desatino e ao desvario da democracia seis anos depois.
ATO III, cena 1
Mia Couto salvou aquela segunda-feira, 18 de abril. No Brasil, na noite anterior, o Plenário da Câmara dos Deputados decidiu pela autorização do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Horas à frente, um oceano inteiro de distância, não assisti àquele espetáculo farsesco que Petra tão bem recordou em seu filme. Tampouco dormi bem. Lembro-me de ter sonhado que o resultado seria outro. Sonhei dormindo e sonhei acordada, alternadamente. Quando o sonho acabou, naquela segunda, Gustavo e eu vagamos sonâmbulos por uma terra que não era a nossa. Levou um dia inteiro até o Mia. Por acaso descobrimos que ele estaria ali em Barcelona, naquela noite — onde e quando também estávamos por um completo acaso, porque, nessa época, eu fazia doutorado sanduíche em Paris — para uma palestra. Fomos. Contou-nos histórias da guerra, do medo. Da enorme injustiça social (e do nosso abismal privilégio) que nos faz temer — temer! — uma criança negra e pobre que se aproxima de nós na rua. De um homem que fez das paredes de uma estação pluviométrica seu livro porque era preciso continuar a escrever ainda que faltasse papel; ainda que faltasse tudo. Mia falou e só aí Gustavo e eu conseguimos nos olhar nos olhos pela primeira vez naquele 18 de abril pós-golpe. A gente chorou.
Cena 2
A primeira vez que pisei em São Paulo depois de dez meses fora do Brasil foi no fim de agosto de 2016, para um congresso de três dias num hotel no Anhembi. Na última noite saí às pressas do trabalho e encontrei minha amiga Suellen Andrade, então cozinheira na Padoca do Maní, no teatro do Centro Cultural São Paulo, para assistir Os arqueólogos, pela qual eu esperava com ansiedade. Naquela noite, conheci São Paulo pelo abraço dos atores Vinícius Calderoni e Gabriel Magon, ao fim do espetáculo, ao som de David Bowie e seu Starman.
Cena 3
Dois dias depois, o Senado confirmou o golpe e derrubou, definitivamente, Dilma Rousseff da Presidência da República.
ATO IV, cena 1
O hotel no qual me hospedei durante um concurso para a Escola de Artes Dramáticas da USP, em novembro de 2018, era bem distante, mas também quase idêntico àquele primeiro, na Consolação. E foi de lá que peguei um Uber em plena terça-feira à noite, depois de uma prova péssima, para, no Instituto Cultural Capobianco, totalmente sozinha embora com um público inteiro comigo, ouvir David Bowie e presenciar um abraço apertado mais uma vez.
Cena 2
A pandemia me roubou viagens, para São Paulo ou quaisquer destinos. Talvez, quando eu voltar, já seja junto com meu filho Tito, que não conhece o mundo de antes. Que, com seu menos-de-ano de vida, não viu como era o mundo antes de ele acabar e acabar e acabar. Talvez, quando eu voltar, conte ao Tito a história do nome dele, a história de um outro Tito preso em São Paulo, torturado em São Paulo, partido de São Paulo para o exílio numa França para a qual eu mesma, poucos anos atrás, escolhi ir.
Ou talvez não conte. Talvez só deixe que ele aos poucos, ao longo dos muitos anos que eu espero que ele viva, pegue carona na calda de outros Cometas e conheça outras São Paulos, do jeito dele.