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Lugar de onde se vê (bem melhor)

Foto: Anna Júlia Lourenço/Grupo Divulgação

ATO 1, cena 1

“Eu amo a arte”, foi o que a vozinha infantil ecoou na plateia do Teatro Paschoal Carlos Magno no último dia 4 de agosto, durante o show do grupo Ingoma, na abertura da 19ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança de Juiz de Fora. Talvez não tenha sido bem amar o verbo usado. Talvez tenha sido gostar muito. Ou, quem sabe, adorar — minha memória anda tão elástica quanto a inocente desimportância que uma criança dá à precisão no momento de descrever a intensidade de seus sentimentos.

Partilho dela, a intensidade. A plateia, formada, majoritariamente, por artistas envolvidos na Campanha, também partilhou. E, em meio à ovação que se seguiu, foi possível aos ouvidos mais atentos escutar — ou quase sentir — um suspiro coletivo e engasgado de alívio. Dois anos e cinco meses de pandemia, três anos e sete meses de governo Bolsonaro. E uma criança, para quem esse tempo representa grande parte de uma vida — metade? quase inteira? — consegue amar e adorar e gostar muito de arte. Parafraseando o título que o escritor Marcelo Rubens Paiva deu ao livro em que trança o “desaparecimento” do pai — assassinado no DOI (Destacamento de Operações Internas) do Rio de Janeiro, em 1971 — ao Alzheimer da mãe, ainda estamos aqui. Queriam-nos mortos, queriam-nos esquecidos, mas ainda estamos aqui.

Cena 2

Se fosse vivo, o dramaturgo Jorge Andrade, cuja obra foi tema da minha pesquisa de mestrado em Teoria da Literatura, teria completado cem anos em 2022. É dele um dos mais especiais conselhos que tomei para mim: “Para se escrever sobre um meio, é necessário senti-lo até no sangue, e não poder viver nele. Assim como para escrever sobre um ser humano é necessário compreendê-lo, a ponto de amá-lo… e não poder fazer nada por ele — às vezes nem mesmo suportá-lo”.

Cena 3

Era 15 de março de 2020 quando pus o ponto final na peça que gostaria de ter encenado então. Antes que a pandemia, oficialmente, começasse, mergulhei em outra, em que Julieta Capuleto, Isolda a Loira e Heloísa de Argenteuil transformaram-se em Júlia, Isa e Helô, três mulheres escondidas num aparelho clandestino, resistindo num e a um mundo onde toda morte é autorizada, exceto uma: “Morte por febre hemorrágica: liberada. Morte por supervírus novos: permitida. Morte por afogamento em enchente: ok. Morte por atropelamento: tudo bem. Fome: beleza. Assassinato, latrocínio, estupro, briga de gangue, chacina policial, balas perdidas, encontradas, com endereço certo: maravilha. (…) morram da porra que quiserem, só não ousem, de forma alguma, morrer de amor.”

O ponto já não é mais final, porque precisa ser reescrito. A peça tampouco foi encenada e nem sei quando ou se um dia será. Ainda me pego repetindo, no entanto, uma das últimas falas: “Para o organismo, toda história de amor é uma história de disritmia”. Para a sociedade, também. Também amo a arte, pequena criança, sobretudo o teatro, essa que é a única de todas as artes que só acontece em presença. E amo porque ele me descompassa. E também porque, sem ele, o mundo é insuportável.

ATO II, cena 1

Sei da história de um menino cuja primeira peça assistida foi uma representação de Chapeuzinho Vermelho. No meio do espetáculo, na cena do Caçador, gritou de medo e saiu correndo porta afora. Correu do teatro, mas nunca, jamais, escapou. O menino virou homem. De teatro. No dia 27 de julho, lotou o Forum da Cultura com uma releitura de A morta, de Oswald Andrade, com cujo texto ajudou a fundar e inaugurar aquele espaço, há 50 anos. No dia 6 de agosto, com uma cabeça de Lobo, já sem medo dos caçadores, festejou com a neta Maria, de 2 anos e meio, no colo, entre os seus, no Cortejo da 19ª Campanha de Popularização.

Cena 2

Maria também é o nome da filha de 2 anos e 10 meses da minha amiga Priscila Marques. A Pri estava no palco do Paschoal quando a criança da plateia bradou seu amor. Sua Maria estava nessa mesma plateia, poucos dias depois, para assistir a primeira peça de sua vida. Aquele menino que virou homem costuma dizer que o teatro é uma janela que se abre para a esperança. Às vezes, é bem verdade, também abre nossos olhos para o desespero. Mas é necessário. Que o encanto de luzes e cores e sons e formas e personagens e fantasia que as duas Marias descobrirem ao longo da Campanha de Popularização do Teatro e da Dança, que segue até o fim do mês, descortine a elas um mundo bem maior — e melhor! — do que a dupla pandemia que elas viveram até aqui.

ATO III, cena 1

Eu tinha 16 anos quando pisei pela primeira vez no palco do Forum da Cultura, como aluna no Curso de Iniciação ao Teatro do Centro de Estudos Teatrais — Grupo Divulgação. Com um spot de mil watts na cara, a plateia vira um breu. “Para saber se está na luz, feche ligeiramente os olhos”, ensinou o menino-homem José Luiz Ribeiro. “Se a pontinha dos cílios brilharem, é porque está.”

Cena 2

O teatro, o jornalismo, Jorge Andrade, o mestrado, a tragédia, o doutorado, meus amigos, minha casa, minha família. O Centro de Estudos Teatrais — Grupo Divulgação definiu toda a minha vida.

Cena 3

Com todo um arsenal de iluminação aceso sobre o palco do teatro Paschoal Carlos Magno, não vi a criança que se manifestou. Mas vi. Com muitos milhares de watts acesos diante dos olhos, a plateia, sobretudo nas fileiras mais atrás, vira uma massa indistinta, ainda mais para uma míope como eu. Mas teatro — do grego theatron — é lugar de onde se vê também com outros sentidos.

Cena 4

Volta e meia preciso semicerrar as pálpebras e deixar brilhar as pontinhas dos cílios para saber que há luz no fim do túnel.