Terminei recentemente de assistir à série, sucesso de audiência no país, Sandman. Trata-se da adaptação do HQ de Neil Gaiman, criado em 1989, que conta a história de Morpheus, ou Sonho (o Sandman), que se apresenta como a personificação do sonho e faz parte de uma família formada pelos perpétuos, que inclui Delírio, Desejo, Destruição, Desespero, Destino e Morte. Para além da série, que realmente entrega o que promete e justifica o sucesso de audiência que a fez a mais assistida em língua inglesa da plataforma, o último episódio, disponibilizado como bônus após o fim da primeira temporada, me inspirou a começar essa coluna.
A trama apresenta a angústia de um escritor diante de uma folha em branco. Tão aguda que o faz aprisionar a musa da mitologia grega Calíope, fonte de inspiração para a poesia épica, a eloquência e a ciência. Ao contrário do que ele imaginava no início da relação, extremamente violenta e abusiva, fica cada vez mais difícil abrir mão dessa musa inspiradora.
E parece não ser tão diferente assim com a vida fora os HQs.
Já se deu conta do preço que estamos dispostos a pagar para manter vivo o que nos inspira? De quanta tranquilidade e calmaria, nós, que vivemos a paixão pelas letras e pelas gentes, estamos dispostos a abrir mão para ter inspiração, para inspirar mais fundo e deixar a emoção transbordar para outros olhos?
Confesso que, toda vez que me encontro diante de uma folha em banco, experimento a angústia daquele escritor da série. O misto de tanta coisa para dizer do muito que sinto e preciso dividir para seguir respirando, como a abordagem policial absurda, violenta e tão comum que foi incapaz de gerar na comunidade local a revolta que mereceria.
Ou, ainda, a onda de intolerância e ódio que nos afoga e que, cada vez mais, demonstra que, para resolvermos de fato o mal que nos assola, será preciso mais que um voto. É fundamental repensar as bases que sustentam (a trancos e barrancos) nossa sociedade e que mantêm vivo o eterno olhar da casa grande sobre a senzala, onde vivem, ao contrário do que muitos querem fazer acreditar, não os escravos, mas os escravizados que, cientes de sua condição de violentados, agem a respeito com a força do ódio que os aprisionou.
A folha em branco nos convida ainda a falar da negritude por conveniência que se faz presente sempre que a eleição se aproxima, quando ridicularmente os cabelos e antepassados negros ressurgem para garantir uma facilidade que nós, negros e negras de fato, nunca experimentamos. E a política não é o único espaço onde essa valorização de uma negritude que não foi experenciada ao longo da vida surge para garantir “privilégios” a quem finge estar promovendo inclusão, como os telejornais com suas musas apresentadoras negras que não se parecem em nada com as pretas que habitam os corpos invisíveis que ainda não conseguem se ver na tela e/ou empresas em seus cargos de gerência e direção, que fazem questão da figura não branca para ilustrar uma democratização da fala que ainda não celebramos.
Mas, para além dos grandes temas que angustiam e inspiram aqueles que aceitam o desafio de desbravar a brancura do papel – ou da tela – também estão nossas inspirações particulares, nossos medos, desejos e paixões. Uma vida sem permitir que o outro nos afete seria certamente menos doída e, embora já tenha desejado vivê-la, pelo menos duas vezes por semana, acabo me convencendo de que ela não vale a pena.
Sinto muito por cada ser humano que, tremendo de frio, me pede um trocado nas noites geladas da nossa cidade. Ainda não consegui deixar de ver ali uma história que deu muito errado, talvez por muito pouco, talvez por tanta coisa que ninguém mereceria passar.
Dói a alma presenciar “salvadoras encharcadas de preconceitos e cientes do lugar que cada um de nós deve ocupar na sociedade” com a falta de escrúpulos e respeito de quem só quer ajudar, afinal, claramente está mais preparada para isso do que o universo de pessoas que a cerca, se sentirem no direito de ensinar às muitas meninas negras como devem conduzir suas vidas vomitando preconceitos e agressividades que revelam muito sobre a infelicidade e crueza de quem fala.
Choro por dentro com cada mãe que, diante da vida que a oferece um filho muito diferente daquele que ela havia se preparado para receber, se reinventa para acolher e amar a diferença. Que mesmo sozinha, sorri exausta quando o corpo inteiro chora por não enxergar essa mesma disponibilidade de mudança, respeito e inclusão no mundo.
Sou do tipo de gente que vive em fervuras.
Já tentei levar a vida com a elegância que vejo em muitos que conseguem se colocar à margem e contemplar o mundo com olhar blasé pela bolha que mascara cheiros, sons e afetos na qual escolheram viver. Já eu, e agora eu sei que não é por opção, já que venho tentando há algumas décadas fugir do desconforto que essa vida me traz, só sei transbordar.
E assim como o tema dessa coluna, que foram muitos e não foi nenhum, sigo sendo gauche na vida, celebrando encontros com outros iguais, como você.