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Colunas

O coro do presidente

O trabalhador da bolsa de valores lida com ações, números, ofertas, gráficos e mantém o olho no mercado internacional. Geralmente com dois telefones falando ao mesmo tempo e quem sabe um terceiro em chamada de espera. Luzes piscando e tabelas com números mudando de lugar a cada segundo, siglas que ele não pode perder de vista, movimentando dinheiro que nem é dele, mas é muito. É o país nas mãos que apertam botões e rabiscam anotações. De noite, em casa, num dia de caos sobre o caos, ele brocha.

O trabalhador da portaria do prédio fica 12 horas sentado atrás do balcão falando bom dia, boa tarde e boa noite. Ou olhando as câmeras, se trabalha na madrugada. Teria 36 horas de folga se não precisasse fazer jornada dupla e passar metade da vida, sem contar deslocamentos, cuidando da segurança ou do trabalho dos outros. Depois de dia inteiro fora de casa e acordado, quando consegue deitar na cama ele, fatalmente, brocha.

O trabalhador da saúde nem sempre é um trabalhador com saúde. Aplica injeção, prescreve tratamentos, faz cirurgia e, da prevenção ao obituário, tem vidas nas mãos. E burocracias, porque recebe medicamentos ou representantes de laboratórios, escuta histórias pra entender doenças, enxuga lágrimas de pacientes e escuta desaforo de família. Ou do chefe, do dono do hospital, do plano de saúde que paga pouco, do paciente que ficou na sala de espera. Em casa, sem ânimo ou com ética, não se prescreve o remedinho azul da Pfizer e brocha.

O trabalhador do cais de porto opera guindaste ou carrega caixas. Confere as tabelas de entradas e saídas na prancheta, rabisca tudo, rubrica ao final, confere de novo se tudo está em terra ou embarcado. Perecíveis, eletrônicos, commodities e supérfluos, tudo passa por aquelas tabelas e pelas mãos do estivador. Levanta tanto peso ao longo do dia que eventualmente pode chegar em casa e não conseguir… enfim, ele brocha.

O trabalhador da educação chega cedo na escola, ministra o conteúdo, diminui seu recreio pra atender alunos, comprime o almoço pra conversar com os pais dos alunos e corre pra outra escola. Repete a rotina durante a tarde, alguns também num terceiro turno. Precisa brigar pelo reajuste mínimo fazendo paralisação, que será reposta num sábado qualquer, e de noite, entre um sanduíche corrido e com a televisão ligada num filme chato, corrige os trabalhos do dia e prepara aula. Se tivesse tempo ele brocharia.

O trabalhador da justiça prepara defesas, conversa com clientes, atende telefonemas e orienta estagiários. Corre do escritório pro fórum e de volta pro escritório porque uma audiência nunca é a última. Às vezes torce pra ter que ir ao fórum e comer um pastel no caminho, mesmo suando no terno e manchando a camisa debaixo do braço, mas ninguém vê. Se for o juiz, que não sai do ar condicionado, tem que aguentar as defesas, as conversas e as ladainhas em dobro e no final pode não conseguir manter-se na vara, se em Curitiba. E, em qualquer lugar, eventualmente brocha.

O trabalhador da cultura é diferente. Faz arte, passa o dia todo no prazer do que escolheu fazer pro resto da vida, curte o êxtase de poder fruir sua existência em transcendência e plenitude. Ou faria, se houvesse verba pra cultura, público educado pra arte, respeito pelo seu trabalho e condições minimamente permanentes de realização. Depois de um dia debruçado em editais, longas conversas por telefone e WhatsApp, contas e mais contas, ele se frustra com tudo e antes do final do dia já brocha.

Aos que fizeram coro pro grito do cidadão Jair Bolsonaro e querem compartilhar a cama com ele fica a esperança. Ao ainda presidente que proferiu as palavras, fica o conselho pra ouvir a música de Chico Buarque e tentar brochar pra compensar as últimas décadas no serviço público.

Vai trabalhar, vagabundo
Vai trabalhar, criatura
Deus permite a todo mundo
Uma loucura

Passa o domingo em família
Segunda-feira, beleza
Embarca com alegria
Na correnteza

Prepara o teu documento
Carimba o teu coração
Não perde nem um momento
Perde a razão

Pode esquecer a mulata
Pode esquecer o bilhar
Pode apertar a gravata

Vai te enforcar
Vai te entregar
Vai te estragar
Vai trabalhar

Vê se não dorme no ponto
Reúne as economias
Perde os três contos no conto
Da loteria

Passa o domingo no mangue
Segunda-feira vazia
Ganha no banco de sangue
Pra mais um dia

Cuidado com o viaduto
Cuidado com o avião
Não perde mais um minuto
Perde a questão

Tenta pensar no futuro
No escuro tenta pensar
Vai renovar teu seguro

Vai caducar
Vai te entregar
Vai te estragar
Vai trabalhar

Passa o domingo sozinho
Segunda-feira, a desgraça
Sem pai, nem mãe, sem vizinho
Em plena praça

Vai terminar moribundo
Com um pouco de paciência
No fim da fila do fundo
Da previdência

Parte tranquilo, ó, irmão
Descansa na paz de Deus
Deixaste casa e pensão
Só para os teus

A criançada chorando
Tua mulher vai suar
Pra botar outro malandro
No teu lugar

Vai te entregar
Vai te estragar
Vai te enforcar
Vai caducar
Vai trabalhar
Vai trabalhar
Vai trabalhar
(Vagabundo)