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Quem é você na fila do pão?

Nesta semana, uma conversa com um aluno muito querido me causou um desconforto tão grande que não consigo imaginar quando vai passar.

Quase na entrada do Centro Universitário, um carro adesivado com peças publicitárias das eleições presidenciais passou por nós em velocidade reduzida. Nos olhamos e ele compartilhou uma reflexão perspicaz e cortante que me incomodou profundamente pelo quanto me pareceu correta e atual.

Ele me disse: havia um tempo em que eu via as guerras tribais em países africanos, por exemplo, e me perguntava: como será que eles sabem quem faz parte do outro grupo? Que estão diante de inimigos? Aparentemente, eles compartilham tantas semelhanças, que parece difícil reconhecer à primeira vista, em segundos, quem é o inimigo. Mas, agora – constatou consternado, diante da realidade em que estamos vivendo – eu consigo entender como eles reconhecem”.

Dava para ser mais preciso? Acredito que não. Desse minuto em diante essa reflexão volta e meia me atormenta. Nunca foi tão fácil reconhecer quem está ao nosso lado, com quem podemos contar, quem sente a nossa dor.

Em um recente evento cívico com meu filho fiz questão de comentar ao chegar: olha só se esse lugar não se parece com o Brasil? Com gente de todo tipo, de toda cor, de todo credo, de toda forma de amor… Com dentes e sem; com tênis de marca e descalços; com cigarros suspeitos e camisas com imagens de Nossa Senhora. Diverso como o mundo é, apesar do incomodo que causa em tantos.

Parece tão distante o tempo em que não conseguíamos, ao olhar para alguém na fila do pão, fazer nossas apostas sobre quais profissões ele acredita que deva exercer a filha da sua empregada; se seria respeitosamente chefiado por uma mulher; como receberia a namorada negra do seu filho em casa ou o que comentaria ao passar por um assentamento nas encruzilhadas da cidade.

Esse tempo já não existe mais.

Sabemos com quem estamos lidando.

Sabemos bem quem nos respeita, quem nos enxerga como iguais e quem nos tolera. Quem nos trata bem, apesar de.

E mais que isso, aqueles que se sentem superiores por, ao contrário do que deveria acontecer tendo em vista a superioridade que possuem, não serem racistas, homofóbicos e preconceituosos.

O tratamento considerado justo que dispensam aos “diferentes”, para estes é a incontestável prova de sua bondade. Afinal, mesmo aqueles a quem teriam o direito de tratar de forma desigual, tendo em vista sua inquestionável inferioridade social, tratam com cordialidade.

A mesma que os fará, com um sorriso no rosto e uma fake news ensaiada, caso tenham uma nova chance de fazer isso, garantir que os diferentes não voltem a se sentar lado a lado em um avião, que seus filhos não sejam colegas de classe na faculdade de medicina e que outros tantos, como eu faço agora, parem de se atrever a dizer o que incomoda.

Para que isso não aconteça, é preciso, mais do que identificar aqueles que não fazem parte da nossa tribo, reunir os que fazem. Fortalecê-los, esperançá-los, inspirá-los. Estamos vindo de uma guerra diária que nos adoeceu, decepcionou e encolerizou. Precisamos de todos os abraços, e mais alguns mais, para relembrarmos que basta uma centelha de luz, de uma estrela ou várias, para enfraquecer as trevas.