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A taça do mundo é nossa

1° tempo

15’

Às 8h da manhã do dia 30 de junho de 2002, eu estava sentada no chão da sala de TV da casa de um ex-namorado, ao lado de um grupo de colegas remanescentes da escola, para assistir à final da Copa do Mundo do Japão e da Coreia, disputada entre Brasil e Alemanha. Não me lembro absolutamente nada daquele jogo — para falar a verdade nem do torneio —, a não ser que o técnico era o Felipão, que o ídolo era o Ronaldo Fenômeno e que a seleção brasileira se sagrou pentacampeã mundial. Por mais que me esforce, neste exato instante, minha memória já esmaecida depois de 20 anos não alcança nem todas as pessoas que estavam presentes. Por questão de lógica, porém (uma lógica advinda da proximidade), tenho certeza de que, sentado naquele mesmo chão, assistindo àquela mesma partida, estava um hoje ex-amigo que não se acanha em compartilhar notícias falsas diariamente em seus stories no Instagram e que votou em Jair Bolsonaro nas duas últimas eleições.

30’

A Copa do Mundo, mesmo com a vitória do Brasil, foi o acontecimento menos marcante do ano de 2002, ao menos para mim. Exatos 25 dias antes do início do mundial, eu tinha começado a Faculdade de Comunicação e estava vivendo todas as novidades clichês da vida de universitária. Além disso, quatro dias depois do trote (que os calouros ainda recebiam), estreei também meu primeiro espetáculo infantil como integrante do Centro de Estudos Teatrais — Grupo Divulgação. O teatro, aliás, consumia a maior parte do tempo e, naquele mesmo domingo em que a seleção brasileira derrotou a alemã pela manhã, no horário de Brasília, à tarde e à noite eu tinha peça de teatro para apresentar, de modo que nem o evento principal do dia o jogo foi. Poucos meses depois terminei definitivamente o namoro (que já tinha chegado a acabar antes) que durara boa parte da adolescência. Quase em seguida, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito, pela primeira vez, presidente do Brasil.

45’

Com Lula eleito novamente, 20 anos depois, deve haver bastantes apostas sobre a possibilidade de a seleção repetir o feito e passar a estampar a tão sonhada sexta estrela na camisa após duas décadas de espera. Confesso, no entanto, que não tenho acompanhado os preparativos nem sequer cliquei na lista dos convocados divulgada no último dia 7 de novembro. Soube da polêmica sobre Daniel Alves via Twitter, mas, de resto, a maioria dos nomes eu não reconheceria mesmo. Sempre fui uma torcedora bissexta. E, ainda que não praticante, sou botafoguense, o que implica duas coisas: a primeira é que aprendi desde muito nova que o futebol não faz necessariamente muito sentido; a segunda é que no meu peito — e isso se confirmou nestas eleições, diante das camisas amarelas com cinco estrelas vistas à profusão do lado de lá — sempre bateu uma estrela só.

Intervalo

A Copa do Mundo que começa em poucos dias me remete àquela de 20 anos atrás não pela memória afetiva que me traz. A lembrança vem, triste realidade!, é pelo uso das camisas amarelas de cinco estrelas verdes, que em muitos lugares do país seguem acampadas não nas portas dos estádios, mas nas dos quartéis. E pelo ex-amigo que não se acanha em compartilhar fake news e que, mesmo depois desses últimos quatro anos, votou em Bolsonaro, mais uma vez. Fico me perguntando que semente disso já existia lá atrás, silenciada pelos dois gritos de gol que provavelmente compartilhamos na final de 2002, e que eu não vi.

2° tempo

15’

A primeira Copa de que me lembro, essa sim com profundo afeto, é a de 1994. Foi a primeira vez que reparei nas ruas do bairro se colorindo de verde e amarelo, de bandeirinhas nos postes ao meio-fio. Foi a primeira vez que observei maravilhada o asfalto ganhar desenhos elaborados que, nas quatro cores da bandeira brasileira, ilustravam o significado de entusiasmo e de esperança. Foi a primeira vez.

Naquela final, quase 30 anos atrás, uma prima estava passando o fim de semana na minha casa e posso jurar de pés juntos que foi ela a responsável direta pelo tetra, quando, durante a cobrança de pênaltis, colocou seus dedos polegar e indicador contra a tela da televisão de 14 polegadas no meu quarto, ajudando Taffarel a cercar o gol, e induziu o italiano Roberto Baggio a chutar para fora. Depois saímos à avenida principal do bairro de pijamas mesmo, correndo felizes, nos misturando à comemoração.

Essa lembrança me faz cócegas por dentro, me trazendo automaticamente a vontade de sorrir. Principalmente porque me sinto muito esperta ao constatar que, desde aquela época de criança, eu já achava Bebeto e Raí infinitamente melhores que Romário, como parece que continuam.

30’

Em 1998, a abertura dos jogos interclasses da escola tinha como proposta celebrar a Copa que viria. Vestida de azul, participei da coreografia para a música “Pra frente Brasil”, então regravada pela banda mineira Jota Quest. Só soube depois que aquela canção tinha sido o tema do país na Copa de 1970, usada como propaganda do governo militar enquanto o couro comia nos porões. Enquanto gente era presa, torturada, morta, desaparecida.

O penta não veio em 98. Talvez ressuscitar essa música não tenha sido uma boa ideia.

45’

Tem uma peça da Cia. Putz! encenada há alguns anos em Juiz de Fora, com texto de Tarcízio Dalpra Jr. e direção de Pablo Sanábio, que retrata esse período de 1970. Na trama, intitulada “Entre infernos”, dois estudantes e um professor universitário são encurralados entre o fanatismo religioso de uma pequena vila e a perseguição política praticada pelo governo e seus apoiadores. Num determinado momento, se não me engano, os perseguidos comemoram, mesmo escondidos, a vitória do Brasil no futebol.

Fanatismo religioso de um lado; perseguição política de outro. É incrível a capacidade do teatro de, falando do passado, estar imerso em seu próprio tempo e também bem à frente dele. Camisas da CBF, bandeira do Brasil, bíblias e terços têm se misturado na porta dos quartéis. Pensei que o ápice desse triste e absurdo espetáculo acontecia aqui em Juiz de Fora, à porta da 4ª Brigada de Infantaria Leve de Montanha, de onde saíram as tropas do general Olímpio Mourão Filho para depor o presidente João Goulart, no golpe de 1964. Mas não é só aqui. Nesta última segunda-feira, durante nossa reunião semanal, meu chefe contou que, em Goiânia, onde ele vive, o cordão dos “patriotas” insatisfeitos se reúne diante do 42º Batalhão de Infantaria Motorizado. Meu chefe teve o pai e a irmã torturados nesse lugar.

Apito final

Não sei se a seleção vencerá a Copa do Mundo que começa este mês. Tampouco ouso apostar se retomaremos a camisa amarela de estrelas verdes ou se, para gente como eu, ela está irremediavelmente perdida. Não tenho dúvida, contudo, de que, aos olhos da maior parte do mundo, na maior disputa de 2022, aos 45 minutos do segundo tempo, o Brasil, sim, venceu.