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Campo de distorção da realidade

Foi assim que o funcionário da Apple Bud Tribble descreveu o patrão, Steve Jobs: ele tem um Campo de Distorção da Realidade. Era como se o co-fundador da empresa visse o mundo de uma maneira própria e quisesse convencer as pessoas disso. Geralmente ele tinha razão, mas às vezes errava feio.

Teve razão quando conversou com um dos engenheiros da Apple. O programador havia conseguido um feito ainda inédito e até hoje maravilhoso no layout das áreas de trabalho: sobrepor janelas abertas. Como se duas folhas de papel estivessem sobre uma mesa e você pudesse ver a ponta da folha de baixo. Na mesa de trabalho é fácil, na tela nem tanto. Ao invés de congratular o feito, Jobs disse que as pontas das janelas não poderiam ser quadradas, angulosas: tudo no mundo tem curvas, por isso as janelas não poderiam ter quinas, mas voltas.

O engenheiro questionou e Jobs o chamou pra conversar. Jobs gostava de conversar andando, por isso foram dar a volta no quarteirão. Na metade do caminho, depois de Jobs mostrar placas, casas, carros, enfim, o mundo, o funcionário estava convencido de que precisava arredondar os cantos dos quadros. E assim são as janelas dos Macs até hoje e a Samsung perdeu mais uma causa na justiça por conta disso.

Por outro lado, Jobs ignorou por anos que tinha uma filha. Ignorou com algum remorso, porque batizou com o mesmo nome um computador que criou (o Lisa foi um fracasso) e depois foi ter contato com ela, já adolescente. Sem contar alguns ímpetos que o assolavam no elevador, quando era capaz de demitir trabalhadores por não responderem o que ele queria (mas o RH sabia disso e os mantinha no quadro, com o alerta de evitarem o patrão).

Nesses altos e baixo, Steve Jobs mudou diversos setores da comunicação mundial, do aparelho telefônico às formas de ouvir e comprar música e ver cinema, e não só. De gênio a babaca numa mesma frase, é inegável que seu Campo de Distorção da Realidade foi fundamental pra dar à Apple a importância que tem hoje a cultura digital.

Essa Campo de Distorção da Realidade, embora aplicado ao criador da Apple, pode ser levado além, com outros desdobramentos. O que faz esse conceito ter validade é o desenvolvimento dessa distorção ao longo de um tempo. Jobs não nasceu assim, construiu seu olhar sobre o mundo a partir de vivências, estudos, fundamentações, erros e acertos.

Os bolsonarentos têm um Campo de Distorção de Realidade também desenvolvido ao longo do tempo, amparado por notícias sem fonte, vivências dos outros, erros e mitologia.

A mitologia é o mais importante, porque varia da distorção da palavra mito aplicada ao ídolo que seguem e chega aos poderes divinos, hercúleos, de se querer parar um caminhão com o próprio corpo. Ridicularizar esse comportamento é uma solução, mas não atinge os terraplanistas que temem terem cômodos vagos de suas casas ocupadas por moradores sem teto.

Até dizer o óbvio é difícil: foram oito anos de governos Lula, treze anos de PT no executivo nacional e ninguém fez isso. Por que fariam agora, quando estão de mãos dadas com o centro e até com parte da direita, buscando acima de tudo a retomada da democracia e do Brasil?

Na série House, o médico interpretado brilhantemente por Hugh Laurie inicia a 6ª temporada num manicômio. O primeiro episódio é longo e tem o diálogo com um interno que se acredita um super-herói. Pela primeira vez alguém consegue conversar com ele e os dois saem pra um passeio no parque. House não busca dissuadi-lo da capacidade de voar, apenas não toca no assunto, o que (spoiler, perdão, mas tem muito mais a ser discutido no episódio, embora esse seja o grande impacto, só que sem essa explicação este texto perderia o sentido; e tem coisa suficiente até aqui pra você parar de ler se não quer estragar seu episódio) acaba por ser em vão: ele pula de uma altura exagerada, acreditando que pode voar.

Falar com bolsonarentos afetados pelo Campo de Distorção de Realidade pode gerar essas respostas. Mostrar que estão errados pode ocasionar no seu apagamento (pra cada um seu método), incentivar que sigam no absurdo tragicômico leva a resultados extremos também. Talvez a psicologia saiba lidar com essa espécie. Ou nem ela e devamos esperar pela seleção natural.