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A culpa é sua

Ex(cr)mo. Sr. Ex-Presidente Em Exercício,

na semana passada não entreguei o texto desta coluna e a culpa é sua. Na verdade, fosse uma semana atrás, eu também começaria lhe imputando responsabilidades, mas não pelo atraso de um texto que eu pretendia entregar no prazo. Acontece que, na madrugada de segunda-feira, 12 de dezembro, para terça-feira, 13 de dezembro, acordei com o pé esquerdo. Na verdade, com o pé esquerdo coçando. E era assim que eu começaria este texto: Ex(cr)mo. Sr. Ex-Presidente Em Exercício, nessa noite meu pé esquerdo coçou. E essa culpa também é sua.

Veja bem, Sr. Ex-Presidente Em Exercício, eu sofro de alergia. E de urticária. A alergia é o que me faz ter crises de rinite, sinusite, conjuntivite e outros ites sempre que há qualquer esboço de poeira, pólen, mofo, cheiro de cigarro, pelos de bichos e/ou virada de tempo. A urticária, porém, é um pouco mais complexa. Apareceu numa injeção quando bebê; num antibiótico quando criança; numa primeira viagem para longe; numa longa volta para casa; numa mudança de país e de língua; numa gestação em meio à pandemia; num tanto de outros pequenos momentos transformados em vergões avermelhados e salientes se alastrando pela pele. Momentos que, entre si, só guardam em comum a ansiedade. E o estresse.

Para ser justa, as duas primeiras experiências tiveram causas óbvias e explicáveis batizadas cientificamente de penicilina e sulfa, que preciso declarar a cada nova anamnese num consultório médico. As outras, no entanto, não compartilharam entre si uma única substância alergênica sequer. Nenhuma comida, nenhuma bebida, nenhum item de higiene pessoal, nenhum produto de limpeza diferente usado na roupa ou no lençol. A repetição fica por conta apenas do relógio: os pequenos calombos vermelhos que a cada instante coçam e incham mais e mais só acontecem nas madrugadas. Bem naquela hora em que pensamentos e pesadelos se aproximam mais que por apenas sete letras.

O fato é que na madrugada do dia 12 para o dia 13, Sr. Ex-Presidente Em Exercício, alguns desses calombos tomaram meu pé esquerdo. Dias antes, tinha achado que estava acometida por mais uma crise alérgica, a exemplo da descrita logo acima. Uma crise de rinossinusite como tantas que me levaram a fazer incontáveis testes de covid ao longo dos últimos dois anos e nove meses, sempre para, diante do resultado negativo, contrariar a ciência e provocar um revirar de olhos nos médicos ao dizer que, embora isso não seja baseado em evidências, o fato de minha garganta arranhar um pouco se deve, sim, ao tempo que esfriou.

Sempre não; até semana passada. Porque no dia 11 de dezembro de 2022, transcorridos exatos 999 dias desde que entramos em lockdown aqui em casa, ainda achando que tanto isolamento quanto pandemia durariam pouco, testei positivo para a covid pela primeira vez. Dois dias depois, o mesmo da madrugada em que acordei com o pé esquerdo — com toda a carga negativa que o senso comum deu à expressão, mas que, em outubro passado, assim como em todas as eleições, votei para que ela deixe de ter —, meu bebezinho Tito, 429 dias depois de nascer e sem nenhuma dose de vacina contra covid, testou também.

Eu poderia ter repetido a frase do título para o espelho, Sr. Ex-Presidente Em Exercício. E repeti. Também poderia tê-la direcionado em pensamento (e direcionei) a cada pessoa, mesmo amiga, que encontrei nos últimos dias, eu estando de máscara e ela não. No entanto, o dia em que meu filho prostrou-se no meu colo por horas com a primeira febre da vida — me impedindo de escrever este texto e de sentir qualquer coisa que não fosse raiva, medo ou tristeza — também foi o dia em que a imprensa noticiou que um bebê de oito meses morreu em decorrência da covid, na cidade de Paudalho, na Zona da Mata Norte de Pernambuco. Ou ainda que a Fiocruz divulgou que a covid-19 matou uma criança de 0 a 5 anos todos os dias ao longo deste ano no Brasil.

E essa culpa, Sr. Ex-Presidente Em Exercício, não é de qualquer desajuste na minha máscara ou da falta de máscara alheia num momento em que ela não é obrigatória. É, antes sim, da sua negligência, da sua omissão, do seu deboche, do seu desincentivo às medidas de enfrentamento à pandemia, do seu atraso na vacinação, da sua recusa em vacinar as crianças pequenas, do desmonte que seu governo promoveu no PNI (Plano Nacional de Imunização).

Meu pé esquerdo coçou, meu filho passou dois dias inteiros com febre no meu colo, O PHAROL ficou sem esta coluna na semana passada, 692 mil pessoas morreram de covid no País. E a culpa, Sr. Ex-Presidente em Exercício, é sua. Não é do espelho, do pólen, do mofo, do cigarro, do gato, do cachorro, da penicilina, da sulfa, da ansiedade, do estresse ou da (falta de) máscara. Tampouco é da virada de tempo — a não ser aquela que o trouxe, mas que agora, felizmente, vira de novo, com novos ventos para o mandarem embora.