O jornal O Pharol noticiava em sua edição de 27 de dezembro de 1922 que “o talentoso artista sr. João Carriço inaugurou anteontem solenemente o deslumbrante presépio, armado na avenida Quinze de Novembro (atual avenida Getúlio Vargas), na empresa Carriço, o qual tem sido muito apreciado”.
O mesmo jornal informava dias depois que, “não obstante a chuva impertinente que continua a cair sobre a cidade, o belíssimo presépio continua a ser muito admirado ascendendo já a 18.000 o número dos visitantes que o têm procurado”. Nos anos seguintes, esse número de visitantes só viria a aumentar.
O “presépio da empresa Carriço” que mais tarde se tornou “o presépio do Cine Theatro Popular” era fruto de uma promessa feita pelo cineasta e documentarista João Gonçalves Carriço e acabou se tornando uma tradição em Juiz de Fora nos anos de 1920 e 30. Pelos relatos dos visitantes, conforme jornais da época, ele conseguiu fazer da sua dívida divina um espetáculo.
“O presépio ficava na porta do cinema. Era mecânico e feito de vários materiais. Botava na tomada e ele crá, crá, crá, crá, crá. Mexia pra lá e pra cá. Então vinha aquela multidão pra ver o presépio. O menino Jesus se levantava. Água caindo, cachoeira, carneirinhos andando pra lá e pra cá. Os três pastores se mexendo com presente na mão. Muito lindo. Era movimentado.”
O relato é do jornalista e crítico de cinema Décio Lopes em entrevista ao professor de cinema da Universidade Federal de Ouro Preto, Adriano Medeiros da Rocha, autor de “Cinejornalismo brasileiro: Uma visão pelas lentes da Carriço Film”. Ainda conforme Décio Lopes, que frequentava o Cine Theatro Popular, o sucesso do presépio era tamanho que atraía até visitantes de outros municípios da região.
Além do presépio, nas proximidades do Natal, João Carriço ainda oferecia sessões gratuitas no Cine Theatro Popular. Em um dos cartazes de divulgação da programação do espaço, de dezembro de 1935, são anunciados brindes e brinquedos “às crianças de 0 a 80 anos”. Em outro anúncio, havia o registro de que mais de 25 mil pessoas visitaram o presépio.
A promessa
A promessa que levaria à montagem do presépio em Juiz de Fora remete à passagem de João Carriço pelo Rio de Janeiro. Depois de uma tentativa frustrada de morar na então capital do país em 1900, quando foge de casa com apenas 14 anos, ele não hesita em repetir a aventura dois anos depois.
A nova investida é exitosa. Após uma curta parada em Petrópolis, onde trabalha numa cervejaria como pintor de letreiros e, logo depois, passa a viver no Hotel Europa, onde trabalha na decoração do imóvel e na confecção de cartazes, João Carriço consegue juntar uma pequena economia e aprender as primeiras lições em cenografia. Pronto, sua mudança para o Rio de Janeiro estava encaminhada.
De volta à capital do país, João Carriço segue seu aprendizado como cenógrafo nas companhias estrangeiras. Ele sobrevive pintando tabuletas e cartazes de propagandas para filmes nos principais cinemas cariocas. Segundo Décio Lopes, nesse período, João Carriço “acabou montando um estúdio para fazer cenários para teatros, pintar letreiros e, sobretudo, tabuletas para o Cine Ideal – o mais importante do Rio de Janeiro”.
Adriano Medeiros da Rocha escreve que, nessa nova fase no Rio de Janeiro, João Carriço se mostra “um homem elegante, frequentador de cafés e dos principais pontos da boemia carioca”. Foi o período mais agitado de sua vida de solteiro. Manoel Carriço Filho diz que o avô chegava a se passar por francês. O que Décio Lopes confirma.
“Era tido como uma mescla de boêmio e filósofo, principalmente no Rio de Janeiro, cidade onde deu vasão a certa face exótica de seu espírito criativo, andando pelas ruas cariocas vestido de fraque preto, calças listradas, chapéu de côco, gravata papilô e polainas – extravagâncias matreiras de um mineiro genial.”
É nesse espaço alegre e festivo da boemia carioca que João Carriço, conforme relata Adriano Medeiros da Rocha, adquire um tumor sifilítico na garganta e fica em estado grave de saúde. Ele é transferido às pressas para um hospital em Petrópolis, onde sua irmã Elisa trabalha como freira.
Desenganado pelos médicos, João Carriço faz uma promessa que, caso melhorasse, iria passar a montar todos os anos, na época do Natal, um presépio em adoração a Jesus Cristo. Suas orações são atendidas. Uma freira alemã lhe aplica uma dose de nitrato de prata no local do tumor. Ele responde bem ao tratamento e volta para Juiz de Fora, onde em 1922 começa a pagar sua promessa.
Carriço Film
João Gonçalves Carriço foi um dos pioneiros do cinema em Minas Gerais. Ele nasceu em 27 de julho de 1886, em Juiz de Fora. Era filho de Manoel Gonçalves Carriço, que era proprietário de uma empresa de carruagens. Mais tarde se associou a Francisco de Paula Gomes, com quem fundou a funerária Carriço e Gomes.
João Carriço foi casado com Luzia Santos, com quem teve seu único filho, Manoel Carriço. Aos 41 anos, em 14 de agosto de 1927, inaugurou o Cine-Theatro Popular, conhecido por possuir preços populares que permitiam que estudantes e operários o frequentassem. O primeiro filme exibido foi “A Inspiração Perdida”.
Em 1933, fundou a Carriço Film, uma produtora que permitiu a documentação da vida social e política de Juiz de Fora e de outras cidades, como Rio de Janeiro, Petrópolis, Belo Horizonte. A Carriço Film produziu cerca de 236 importantes cinejornais até 1956, com grande valor histórico local e nacional.
João Carriço morreu aos 73 anos, com dificuldades financeiras. Nessa época, ele lutava para salvar o Cine Theatro Popular, que corria o risco de ser fechado. Alguns de seus filmes foram destruídos por falta de conservação e devido a um incêndio que, em 1982, atingiu a Cinemateca de São Paulo, responsável pela restauração de parte da sua obra.