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O futuro precisa de tradução

Os irmãos Grimm foram grandes tradutores de histórias. Ouviam narrativas em viagens e levavam pelo mundo. Mais importante ainda, em tempo de crescimento da escrita na Europa, registravam as histórias pra posteridade. O futuro precisa de tradução e foram muitas as que chegaram às crianças no Brasil, de Ana Maria Machado, uma das autoras mais conhecidas no letramento nacional, até Fausto Wolff, figura indispensável no jornalismo político e na literatura brasileira.

A história O homem que saiu em busca do medo está na edição traduzida por Ana Maria Machado lançada em 1986, quando do bicentenário dos irmãos. A coletânea Chapeuzinho Vermelho e outros contos de Grimm traz dez histórias, todas com alguma carga de assombro, mas a do homem que queria se arrepiar tem algumas peculiaridades.

Aos passar por três noites no castelo, em meio a gatos assustadores e boliche de ossos, o homem não sente medo. Conversa, argumenta, joga e chega até a dormir, mas medo ele não sente. Vai se arrepiar depois, no casamento, mas a metáfora fica no ar pra não estragar o final da história.

O medo é uma característica comum da sociedade e que só existe pela perspectiva de futuro. Sem consequências como a morte, doenças, fome, desemprego ou fracasso não existiria o medo. Olhar pros dois lados ao atravessar a rua vem do medo de não chegar ao outro lado. O outro lado é o futuro. E há quem tenha medo e não demonstre, ou até diga que tem, mas faça parecer que não.

Lula passou três noites no castelo e saiu sem sentir medo. Passou pela presidência de um dos maiores países do mundo, o que deve ter feito, como qualquer governante sensato, sempre olhando pros dois lados. Lula sempre foi hábil negociador, cunhado em mesa sindical, o que o levou a superar com grande aprovação a primeira noite.

Também foi para negociar, e não por medo, que demorou mais tempo no Sindicato dos Metalúrgicos do que gostariam Moro e Dallagnol: Lula queria a manutenção de seus direitos (dos que não foram pisados) e a dignidade reservada a uma das mais importantes lideranças do Brasil. A segunda noite no castelo durou mais de quinhentas, mas ele saiu sem medo.

A terceira ele vive agora, de cabeça erguida, mais uma vez fazendo história. Sem medo do carro aberto, sem medo da multidão (todo mundo que se preze deve conhecer alguém que migrou pra Brasília) e sem medo de ter que negociar mais quatro anos dentro e fora das fronteiras pro bem do povo brasileiro.

No entanto, por serem os irmãos Grimm europeus, talvez esse homem sem medo seja parente mais próximo de uma mulher, cuja família migrou de lá. Dilma Rousseff também teve suas noites de castelo e um tanto mais assustadoras que as de Lula. Provavelmente por ela ser mulher, os fantasmas foram mais incisivos nos buuus! Sem êxito.

Por todo o período em que foi metralhada, pra usar termo caro a alguns, trabalhou, manteve a cabeça erguida e não demonstrou medo. Por cada dia de governo, de afastamento e no dia do golpe de 2016 manteve a integridade. Hoje, numa adaptação do conto pra outra mídia, uma protagonista feminina teria onde buscar inspiração.

Há quem ainda não consiga entender essas etapas da História do Brasil, pra alguns ainda muito recentes, pra outros ainda em gerúndio, pois fazem parte de um processo de remodelação da democracia ainda em curso. No entanto, na parte do medo, o futuro é mais breve do que parece, fica logo ali do outro lado da rua.

Ou do outro lado de um voo entre Brasil e Estados Unidos, quando embarcado no avião está um cagão.