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Obrigada, vô

ATO ÚNICO

Noite passada, sonhei com meu avô. Bem mais jovem do que me lembro, bem mais jovem do que jamais o vi. Não me recordo de ter sonhado com ele nenhuma outra noite, nem nos 15 anos anos em que convivemos quando ele ainda estava vivo, nem nestes 23 anos que se passaram desde que ele morreu. Não sei se algum psicanalista conseguiria explicar o porquê desse sonho agora. Talvez porque seja nele em que penso quando vejo a persistência do séquito do ex-presidente em exercício na porta dos quartéis. Ou talvez porque a notícia sobre o estado de saúde do Pelé tenha feito emergir a memória de que meu avô foi o primeiro paciente que vi em cuidados paliativos, embora nem tivesse ouvido essa expressão ou imaginasse o significado dela. No aniversário de 80 anos do meu avô, foi a última (e acho que a única) vez que a família inteira se reuniu, na expectativa de que não haveria outro ano a comemorar. Não houve. Meu avô morreu das complicações provocadas por um câncer nas cordas vocais oito dias antes de completar 81.

Escrevi sobre meu avô no prefácio da minha tese de doutorado sobre o trágico dos mortos sem sepultura deixados pela ditadura civil-militar brasileira. E também num poema publicado a esmo numa rede social num dia de revolta com o séquito do ex-presidente em exercício que, antes de se aglomerar na frente da 4ª Brigada de Infantaria Leve de Montanha, se juntava para roubar as cores da Copa numa praça aqui perto de casa. O avô que era primo de segundo grau de Getúlio Vargas e conterrâneo de João Goulart e Leonel Brizola versus o avô que era tenente do Exército em pleno início dos anos 1960. O avô que foi pracinha na Segunda Guerra versus o avô que, segundo se conta, transformava a própria casa num campo de batalha quando bebia. O avô que me deu um relógio de ponteiro e que costumeiramente trazia nos bolsos da calça cinza um punhado de balas de maçã verde versus o avô que deixou de herança uma coleção de mais de 20 ou 30 anos de medalhas do AA (Alcoólicos Anônimos).

Tem uma foto linda dele na casa da minha mãe, a farda impecavelmente alinhada, posando ao lado da minha avó. Toda vez que pensava em quartel, pensava que meu avô já tinha estado em um. Em vários. Em São Borja, Curitiba ou Avelar, cidades e distrito pelos quais as certidões de nascimento dos filhos registram que ele passou.

Hoje gosto de devanear que ele entrou para a reserva mais ou menos em 1964, aproximadamente quando se mudou para Juiz de Fora, por ter sido um dos militares que resistiram à quartelada. A verdade, porém, é que essa versão fantasiosa, sobre a qual nunca conversamos, é bem improvável. O mais possível é que tenha se aposentado porque já tinha quase 50 anos e era alcoólatra. Mesmo assim, pensar que ele não estava mais na ativa durante os anos de chumbo me conforta. Da mesma forma que imaginar que ele agora, se fosse vivo, estaria bem longe dos portões de qualquer prédio ligado ao Exército brasileiro, de onde saiu para não voltar mais (à exceção do hospital militar).

Em “Ainda estou aqui”, de Marcelo Rubens Paiva, ao contar sobre a prisão da mãe logo depois de o pai ter “desaparecido”, assassinado dentro do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), no Rio de Janeiro, o autor escreve: “Tenho um agradecimento a fazer aos militares brasileiros: obrigado por não terem matado a minha mãe”. É pesado, mas tenho um agradecimento parecido: obrigada, vô, por só ter machucado os seus. E por, como suas medalhas de guerra atestam — não as que você trouxe da Itália, mas as da sua guerra particular —, ter se arrependido a vida inteira também.