A língua portuguesa é rica, internacional, embriagada de influências e tão mutável quanto qualquer outra, ou quanto o relato de um senador. O problema, como ocorre com qualquer ferramenta criada pela humanidade, está no usuário.
A língua está aí, para ser usada e abusada. Todas elas. Quando mais usada, mais muda. Porém, o modo de usar é questão importante. Interpretar um texto é cada vez mais difícil em tempos de parcas leituras. Parcas no sentido qualitativo, não quantitativo. Lê-se muito, o dia inteiro, da mensagem de bom dia no grupo da família às manchetes sensacionalistas.
O que pega é quando se clica no link ou se pergunta no primeiro dia de aula à turma que livro cada um leu nas férias. Putz, ler nas férias…?
Nas notícias, ainda mais tem tempos turbulentos como os vividos nos Brasil dos últimos anos, estão várias escolhas retóricas que confundem o leitor, do título à última linha. Aquele que lê o que aparece numa timeline sem clicar na notícia fala de tudo numa fila de banco, mas não resiste a uma mesa de bar.
Na sala de aula, os exemplos precisam ser simplificados, o vocabulário adequado e as referências limitadas. Importante: todo tipo de literatura tem seu lugar, mas não o lugar todo. Tanto quem lê apenas clássicos como quem se esbalda em best-sellers está limitado. É importante se permitir o desvio, mesmo que leve ao erro. Quem ganha é o leitor, mesmo no ódio (maravilhosa a cena de O lado bom da vida em que o personagem de Bradley Cooper termina de ler Por quem os sinos dobram no meio da noite, arremessa o livro pela janela e entra puto no quarto dos pais querendo discutir a obra).
Sem as leituras consagradas, o repertório se esvazia, e não apenas o vocabular ou de narrativas, mas, sobretudo, a capacidade de lidar com figuras de linguagem. Fica difícil elaborar uma prova de interpretação de texto. Por exemplo, qual a resposta certa para “O que podemos concluir com os depoimentos de Marcos do Val, senador pelo Podemos?”
- a) Que ele é articulador do golpe.
- b) Que o Alexandre de Moraes é cúmplice da tentativa de golpe.
- c) Que o Daniel Silveira queria dar o golpe.
- d) Todas as respostas acima.
- e) NRA.
Um texto de anos atrás de Christophe Clavé tem circulado nas redes comentando o impacto desse empobrecimento linguístico. Há uma relação direta entre o conhecimento da língua, as inteligências individual e coletiva (esta explicada em livro do Pierre Lévy) e as relações políticas e sociais da sociedade.
Estamos emburrecendo desde que a internet chegou em casa. Coincidência ou não, a culpa não é dela, porque na rede podemos encontrar explicações sobre aonde podemos chegar. Como numa sociedade em que as figuras de linguagem não são apenas incompreendidas, mas proibidas por despertarem senso crítico. É o ponto de partida da distopia Literalmente, criada pelo grupo de estudos do Hupokhondría.
Distopias, como as citadas por Clavé e outras tantas, serviram de referência para o estudo, obras que se tornam essenciais para a compreensão do presente no mundo, em especial no Brasil, onde até mesmo a expressão “dedo no cu e gritaria”, que se popularizou para contar como o caos se instaurava nas discussões e ações desde o golpe de 2016, perdeu seu caráter figurativo graças ao vídeo espalhado esta semana do ex-presidente Bolsonaro na Flórida. Com aquela mão ele assinou decretos.