Li as sinopses dos enredos e ouvi todos os sambas do Grupo Especial das escolas do Rio de Janeiro para este carnaval 2023. As notícias não são nada boas para os inimigos da cultura, extremistas políticos, fanáticos religiosos, racistas, xenófobos e preconceituosos de todo tipo. Com certeza, esta turma vai sair chateada da Sapucaí ou da frente da tela da TV.
Os desfiles prometem ser atos de uma grande ópera em defesa de valores diariamente atacados, mas que teimam em resistir. Noites de magia e emoção somente para os adeptos da diversidade. As escolas retomam suas raízes e as do próprio samba, evocam um passado de lutas, nossas brasilidades, e nos guiam para um infinito de cores, cheiros, sons e luzes bem mais intensas.
Misture aí África e africanidades; muita Bahia, Norte e Nordeste; santos, orixás e divindades; rebeliões contra as elites; manifestos de liberdade. Coloque artistas do barro, folclore, regionalismos e uma pitada arretada de literatura de cordel. Acrescente agora empoderamento feminino, reinado de pretas, protagonismo do povo, do subúrbio, da favela. Vermelho paraíso. Para dar um sabor a mais, homenagens a dois compadres e ao centenário de sua Majestade. Partes de uma nação pulsante que não vão conseguir apagar.
E assim o público verá um “subversivo beija-flor das multidões”. A escola de Nilópolis vem propor um novo marco para a independência nacional, o 2 de julho de 1823, a verdadeira revolução do povo. Por isso convoca os sobreviventes deste país, há 200 anos marginalizados, a trazer a história que o ensino oficial não conta, a derrubar o mito da ordem e do progresso e a demagogia que marcha em setembro, a refletir que por aqui o preconceito tem conceito estrutural. “A baixada em ato de rebelião” não fala em pátria, mas em “mátria soberana”, com “Marias e Joanas” no poder.
E se falamos de poder, “Eparrey, mainha, quando o verde encontra o rosa, toda preta é rainha”. A Mangueira traz as Áfricas recriadas na Bahia, a resistência negra, cuja rebeldia se dá pela arte, pelo canto, pelo cabelo black (coroa de preto), pela alegria e pela fé. A voz dos candomblés, dos afoxés, dos xirês de orixás, do gueto. A escola exalta o mestre Catendê e os grupos afros que mantêm viva sua cultura, sonho badauê. Ilê Ayê, Olodum, Revolução Didá, Filhos de Gandhi e toda a alegria que invade o Pelô. Também mostra que, fora de Salvador, “o samba foi morar onde o Rio é mais baiano.”
A Tijuca, por sua vez, toca o sino da igrejinha, atabaques e agogôs, louva Santo Antônio, saúda Xangô, e toma um banho de purificação nas águas do Kirimurê, o mar tupinambá. O enredo é a Baía de Todos os Santos. De todos os santos e axés, de igrejas e candomblés. A África do lado de cá. A baía, testemunha de invasões, levantes e lutas, com ondas de liberdade e cheiro de maresia. Fala do encontro de duas rainhas, Iemanjá e Oxum, e da procissão de Bom Jesus dos Navegantes, onde o marinheiro nunca está só. Da lavagem do Bonfim às missas em Iorubá, passa ainda por Mercado, Ribeira e Lapinha, por muitos tesouros e ilhas, e pelos blocos de festa, na esperança de que seja eterna a fantasia.
O Salgueiro pede tempos de paz e traz para a avenida um paraíso vermelho, em todos os seus tons. O enredo segue o evangelho de um certo profeta do carnaval, João: 30, onde a regra é ousar e o proibido é proibir. “Na Terra – jardim dos exilados – o inferno são os outros.” Cavaleiros do Apocalipse propagam conflitos, escassez e fome, condenam e excluem. “Quem será pecador? Quem irá apontar?”, pergunta o samba. E o desfile vai mostrar a redenção dos renegados. No novo Éden, “as portas são abertas a quem tem sede de infinito, de liberdade, de respeito”. Promete a sinopse: “no lugar das trombetas, os tambores da Furiosa darão as boas vindas”. Um grande grito contra a violência, a opressão e a intolerância. O samba como a revolução da alegria.
Tomando caminho inverso, a Imperatriz vai “aos confins do submundo, onde não existe inverno” para contar “o aperreio do cabra que o excomungado tratou com má-querença e o santíssimo não deu guarida”. O samba de cordel narra bem o acontecido e dá adeus ao capitão. Virgulino Lampião acaba fazendo um furdúncio na casa do capiroto. E a sinopse ainda diz, acredite você ou não, que ele tocou fogo no inferno. “Morreu pra mais de cem cão. Desgraça Pouca e Bananinha, morreu também Propina, Preguiça, Luxúria, Avareza e Safadeza. Prejuízo sem igual. Foi-se o lucro da rachadinha.” Expulso do inferno, Virgulino bateu no céu, mas nem adiantou apelar pra Padim Ciço. O jagunço voltou para a Terra e vagou pelos cantos do sertão, até deixar-se amassar como barro pelas mãos de Vitalino.
Aliás, o “Deus do Barro” é o mote do desfile da Mocidade. No maior Centro de Artes Figurativas das Américas, cada obra dos artistas do Alto do Moura tem um pouco deste mestre. “Amassa, deixa arder o massapé; a massa, força de Caruaru.” Um desfile de Marias e Josés que têm no barro sua lida, suas histórias de vida. Renascida da lama, “essa gente independente” vai moldando um pouco de Brasil. Neste mundaréu, feito de barro Tauá, tem tudo o que se possa imaginar. Cangaceiros, santos, procissões e presépios. “Peças que configuram a vida como um jogo de xadrez”. Tem até festa junina. Padre Cícero Romão. Carros de bois, por que não?, e flores para um boi teimoso.
Sem medo de careta, a Tuiuti procura o “mogangueiro, o mandingueiro de Oyá”. O enredo nos leva ao norte do Brasil, ao samba de roda curimbó, ao carimbó, às festas do Boi-Bumbá. Mas é na Ilha de Marajó, onde, dizem, os bichos ainda conversam com humanos, que encontra o maior rebanho de búfalos do país. Sobreviventes de um naufrágio, eles se multiplicaram e passeiam livres por lá. Também são atração no “Búfalo-Bumbá”, invenção de outro mestre, o Damasceno, que entoa músicas dos tempos da escravidão. À noite, o búfalo está no imaginário coletivo, nas cantigas de ninar, o boi da cara preta do estado do Pará.
As festas de boi certamente serão representadas no carnaval da Vila Isabel. A escola de Noel vai mostrar que a maioria das comemorações religiosas, em todo o mundo, têm sua origem em cultos a divindades consideradas profanas e que se opõem à ideia de um deus único. Para isso, traz para a Sapucaí os deuses e as festas de todo o planeta. Dionísio, Baco e Evoé têm a companhia de divindades do Egito, da Mesopotâmia, da China, do Japão, da Irlanda, dos povos andinos e de vários outros lugares e épocas. Os eventos que festejam a vida e também os que celebram a morte trazem emoção ao desfile. Não poderiam faltar as festas incorporadas à cultura brasileira até chegarem à grande folia da Sapucaí.
Sagrado e profano seguem desfilando com a Viradouro. Comparada à Maria do Egito, a santa meretriz alçada ao altar, Rosa Maria Egipcíaca, a mulher misteriosa, chega coberta em seu manto. Escravizada, abusada ainda criança, prostituta, acusada de feitiçaria, beata. A saga de Rosa Courá, primeira mulher negra a escrever um livro no Brasil, apresenta as pétalas e espinhos da vida desta fabulosa personagem. A escola vai desvendando sua história, entre a ginga no acotundá, as visões, a perseguição, a devoção e o misticismo. Daí surge uma Rosa “preta e cálida – a Rosa Mística do Brasil”, “a mais bela aos pés do senhor”, “a santa que o povo aclamou.” A vídeo-sinopse (disponível no YouTube) tem primorosa interpretação de Erica Januza. Impossível não se emocionar.
Devoção e misticismo também não faltam nas trajetórias pessoais e nas obras de dois compadres homenageados por escolas diferentes. Arlindo Cruz, pela Império Serrano, e Zeca Pagodinho, pela Grande Rio. Corpos fechados aos inimigos, coração aberto aos demais. A Serrinha firma na palma da mão, “na boêmia, no subúrbio, na viela”, e lembra que Arlindo é favela: Madureira!!! “Na lua de Aruanda, a espada é de guerra e Ogum vence demanda”. Na levada de tantan, banjo e repique, traz para a avenida os clássicos do compositor, o amor de Orfeu, os sonhos da porta-bandeira. A patente vem do fundo do quintal, a poesia de um Cacique, imperiano imortal. “O fim da tristeza ainda há de chegar, o show do artista vai continuar morando nos sambas que você fez para mim”, cantará a escola, em meio ao “lá laiá lá laiá laiá’, marca registrada do “reizinho”.
A partir de uma música que Jorge Aragão, Seu Jorge e Marcelo D2 fizeram para “zoar” o pagodeiro, a Grande Rio pergunta: “Zeca, tu tá morando ondé?” Nesta procura, o desfile promete passar pelos lugares do subúrbio que tem a marca do “Jessé”. Irajá, Del Castilho, Madureira, Engenho Velho, na feira, na gafieira, nos bares. Pelo caminho, a proteção de São Jorge Guerreiro, as oferendas a Ogum, as quitandinhas de Erê para Cosme e Damião. A escola também reverencia a madrinha Beth, o Cacique, a Velha Guarda da Portela. E neste balancê, entre boêmios e malandros, deixa a vida nos levar, a gira girar, encandear, até chegar a Xerém, no seu quintal, onde o samba tem valor, para um brinde com o povo brasileiro, carregado de axé, de verdadeiro alto astral.
É no céu de Madureira que um grupo de sambistas conversa sobre carnaval. Assim vai se desenvolver o enredo da Majestade do Samba. Os que sonharam com um mundo azul e branco sem fronteiras, “que se estenderia além dos limites de suas vidas terrenas”, relembram, com carinho, as glórias conquistadas pela escola fundada com as graças de Nossa Senhora da Conceição e São Sebastião, Oxum e Oxóssi. A primeira a apresentar fantasias, alegorias e sambas representativos do enredo, a primeira a colocar violinos em um samba, a única com sete vitórias seguidas, a supercampeã. A águia de tanta poesia e beleza, de desfiles imortais, chega ao seu centenário com verdadeiras antologias em sua história: Legados de Dom João VI, Rugendas, Memórias de um Sargento de Milícias, Lendas e Mistérios da Amazônia, Macunaíma, Maravilhas do Mar, Contos de Areia. E nomes que brilham no céu e na terra: de Paulo a Paulinho, de Candeia a Monarco, de Clara a Surica e tanta gente infinita. “Ser Portela é tanto mais que nem cabe explicação.”
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Minha amiga Lidiane, como você ia gostar… Já estaria toda animada pra estar na Sapucaí. Mas sei que daí onde está passeia pelas estrelas desse conjunto de alas, habita cada fantasia com sua energia solar, e vai matando a saudade com muito samba no pé. Vamos assim te sentindo, dá um quentinho na alma, um dia a gente se encontra, ao som da bateria mais bela, cruzando toda a passarela numa apoteose sem fim.