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Colunas

A retórica do buraco quente

Quando a situação do país está em jogo, os índices alimentares sempre ganham destaque nos noticiários: o brasileiro está comendo mais frango; o brasileiro está tomando mais iogurte; o brasileiro está na fila do osso; o brasileiro vai voltar a comer picanha. Ninguém fala que o brasileiro está comendo mais buraco quente.

A iguaria dificilmente está entre os símbolos da alimentação brasileira, seja por não ser representativa de uma região específica ou por ser importada, embora de origem controversa. O importante é a mistureba que pode estar dentro do pão, que é bem o retrato do Brasil.

Se na base está a carne moída, geralmente o acém ralado, as condições econômicas podem mudar a qualidade e até a quantidade da proteína, chegando à soja ou à jaca para paladares vegetarianos. Na falta da verba para a carne, principalmente quando é para servir em festas, aumenta o molho. A versão buráquica do “coloca água no feijão”.

O ideal é tentar evitar aguar demais o sanduíche, para não derramar. Ninguém gosta de sair de um aniversário ou de um encontro de família com um borrão vermelho no peito ou no colo. Outra técnica deve ser associada à da quantidade de molho: o tamanho do buraco.

Duas vantagens acompanham um buraco quente: para quem faz, a praticidade de não precisar cortar o pão, podendo apenas arrancar o miolo com os dedos; para quem come, a segurança de que só há uma saída para o molho. A validade do segundo caso depende da precisão do primeiro.

No mais, vale aprimorar o molho com bacon, linguiça, ervas secas ou colhidas no quintal, sal, pimenta e o que mais agradar olfato e paladar, da pimenta de cheiro à calabresa bem ardida. Quando a economia permite, um bom buraco quente tem seu lugar.

Como um bom discurso. Se há quem diga que se come primeiro com os olhos, o cheiro costuma anteceder o prato enfeitado ou o pão na vertical. Pode ser surpreendente como uma criança atravessar correndo o plenário de um evento internacional, parar na beirada do palco e chamar o presidente que discursa ao microfone.

Gentil e aberto a ouvir e a responder diante do público, o presidente, que não vive no cercadinho, recebeu uma declaração de amor e retribuiu. Aplausos para o maravilhoso e sintético diálogo: era o pão furado na medida certa.

Segue a fala do presidente e volta o menino para outra interrupção. Era hora de colocar o molho. Menino esperto, tinha os ingredientes preparados na medida certa, na consistência perfeita e a surpresa: era molho com picanha.

Levou para o presidente a promessa do candidato. O presidente, que já o recebia daquela vez com intimidade, ouviu a fala do menino, respondeu e aproveitou o microfone para, primeiro, explicar ao presidente vizinho o contexto, depois, reiterar a promessa para o menino e dando a lição da temperança: comer o buraco quente de uma vez só pode derramar na roupa.

O menino falou o que muitos brasileiros repetem: cadê o que você prometeu, Lula? E ele respondeu: virá. Ele foi eleito para governar quatro anos, fez promessas com a experiência de quem, espera-se, saberá cumprir tudo nos quatro anos.

Ainda há o momento do “te amo” e que ele permaneça, como há o momento de cobrar cada promessa. É muito mais fácil bater um carro do que consertá-lo, ainda mais se ele vem capotando desde 2016. O pequeno grande retórico que cruzou o salão fez a coisa certa, lembrou que o brasileiro quer a comida nas estatísticas dos noticiários, podendo escolher a carne.

E quer colocar queijo, que segue pela hora da morte.