Profecia autorrealizável n° 1
Algumas noites atrás, entrou uma barata na cozinha de casa. Moro num apartamento no 15° andar e, mesmo assim, uma barata, de alguma forma, vinda pelo ralo ou mais provavelmente pela janela, chegou até aqui.
Naquele dia, eu tinha passado a tarde ensinando ao Tito a música “Uma barata chamada Kafka”, da extinta banda Inimigos do Rei, porque acho a letra simultaneamente divertida e genial. E então, como pareceu que eu a estava chamando, ela veio cá ficar comigo. A oferta que recebeu, porém, em vez de um pedaço de pudim, foi um jato de Baygon.
Profecia autorrealizável n° 2
Ando numa incompatibilidade tenebrosa entre relógio e lista de afazeres. Cuidar do bebê quase em período integral e, ainda assim, trabalhar, cuidar das tarefas de casa (que mesmo divididas se somam, numa espécie de paradoxo matemático), escrever.
E ler para ter o que escrever.
E me inteirar das notícias para ter o que escrever.
E ouvir histórias dos outros para ter o que escrever (podcasts contam?).
E sair de casa e observar o mundo para ter o que escrever.
E, como GH ou Grete Samsa, matar baratas para ter o que escrever.
E, então, não ter tempo de ler; nem de ficar por dentro de todas as notícias; nem de encontrar pessoas; nem de ouvir suas histórias (a não ser a dos podcasts); nem de sair a esmo para observar o mundo (o que ainda se complica com a miopia); nem de dormir, talvez shakesperianamente sonhar, não mais.
“Como vou escrever se não estou com tempo, nem com os óculos, nem com um frasco de inseticida, nem com assunto?”, me assombro.
Foi assim que este texto se atrasou.
Profecia autorrealizável n° 3
Na última terça-feira, 28 de fevereiro, entrevistei a economista Vívian Machado, técnica do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) na subseção da Contraf-CUT (Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro da Central Única dos Trabalhadores). O tema da conversa foi a política de juros estratosféricos do Banco Central e o quanto ela impacta a vida da maior parte da população.
A autonomia do Banco Central foi estabelecida há dois anos, em 24 de fevereiro de 2021, por meio da Lei 179, nascida de projeto de lei complementar enviado ao Congresso pelo governo Bolsonaro dois anos antes. Um dos principais argumentos de quem defende a autonomia é, supostamente, separar o ciclo político-eleitoral do ciclo de política monetária. Supostamente porque, como se vê, Roberto Campos Neto, presidente do BC, é um bolsonarista sabotador que até pode se gabar de independência do atual governo, mas segue bem subserviente ao anterior e à política (que é, sim, eleitoral), dos bancos privados e do mercado financeiro.
Enquanto isso, mesmo que até Joseph Stiglitz, Nobel de Economia e ex-economista-chefe do Banco Mundial, tenha dado razão ao atual presidente brasileiro e dito que os governos de centro-esquerda se tornaram melhores gestores do que a direita no século 21, vozes dos rentistas na grande mídia esbravejam que é o afã de Lula nas críticas o culpado pelos juros obscenos.
O vaticínio ao qual eles dizem “cumpra-se” não é simplesmente o aumento dos juros. É o crescimento da fome.
Profecia autorrealizável n° 4
Em “Desbaratando a biologia”, publicação quadrimestral Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano, confirma a hipótese amplamente difundida de, se houvesse um grande desastre nuclear, ou uma guerra utilizando armas nucleares, apenas as baratas sobreviveriam. Ou, pelo menos, teriam muito mais chances que os seres humanos de sobreviverem num mundo pós-apocalíptico. Rentistas também. Estamos nesse pós-apocalipse, afinal. E, como ela, eles não param de sair dos esgotos.