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Colunas

Meia década é mar demais

Imagem: Mulheres de Luta

I.

Eu não me lembro bem de quando, aos 5 anos de idade, vi o mar pela primeira vez. A sensação de assombro, contudo, permanece. Até então, naqueles primeiros anos da infância, o mar era algo místico, mágico, literalmente desconhecido. Nunca visto, mas imaginável. Narrado e, por isso mesmo, sonhável. Foi então que a mãe de uma aluna da minha mãe nos convidou para viajar. O destino era a Praia do Açu, no litoral norte do Rio de Janeiro, onde hoje, desde 2014, há o que o site descreve como “o maior complexo portuário e industrial privado de águas profundas da América Latina”. Não tinha a água mais azul, nem a areia mais branca, nem a maré mais tranquila (quase me afoguei naquelas águas quando voltei lá, anos mais tarde, já no fim da adolescência). No entanto, por um instante, para a menina de 5 anos que eu fui, cavando buracos na mesma areia em que fuçavam porcos, aquele mar foi meu.

II.

A primeira viagem à praia é um acontecimento na vida de quem não nasceu nela. Ou de quem não a tem por vizinha. De quem veio a um mundo rodeado por uma muralha de morros, ainda que, ao longo dos séculos, muitos tenham sido — e continuem sendo — arrancados da paisagem e transformados em ouro, diamante, ferro e lama. De quem vive onde à água, a não ser das lágrimas, falta sal. Dante Alighieri, exilado de Florença, cita: “Você vai experimentar como o pão de outra pessoa tem gosto de sal”. De dentro dos vales das Minas Gerais respondemos: a água dos outros também.

III.

Um conhecido de um estado do Sul, à beira do Atlântico, me disse uma vez, sorrindo muito, que pronuncio “riio”, com dois is. No rio dele, apesar de grande, o i quase não existe, na pressa de se atirar no oceano. Meu Paraibuna é mais estreito, mas sabe que tem um longo caminho a percorrer.

IV.

É complexo o mecanismo das marés. De um lado a força gravitacional dos corpos celestes, sobretudo do Sol e da Lua, atraindo a superfície do oceano e formando ondulações e elevações de água em sua direção. De outro, a força centrípeta resultante da própria rotação terrestre, que gera outra elevação na direção oposta.

Também é complexo o mecanismo da política:

– o Porto do Açu, construído na primeira praia da minha infância foi idealizado pelo ex-bilionário Eike Batista para, entre outras atividades, escoar minério de ferro extraído das entranhas de Minas Gerais. A relação do empresário com o governo de Dilma Rousseff, que chegou a afirmar que a Petrobras ganharia se fizesse parcerias com a OGX, empresa de petróleo e gás de Batista, foi amplamente mencionada pela imprensa. E, se não fez parte do processo de impeachment da presidenta, em certa medida ajudou a desacreditá-la;

– em meio a plácidos mares de morros e agitadas marés de votos, a terra da liberdade (ainda que tarde) onde nasci elegeu, ao mesmo tempo, a primeira deputada federal trans de sua história e o primeiro deputado federal a cometer deliberadamente crime de transfobia no plenário da Câmara, em pleno Dia Internacional da Mulher — Minas Gerais e seu “riio” de dois is opostos, escoando água corrente, mas também um bocado de lama;

– em outro Rio, no mesmo parlamento onde se assentava (e lastimavelmente ainda assenta) o filho número 2 do ex-presidente recém-expurgado do Planalto, Marielle, toda mar desde o nome, é força centrípeta puxando a periferia para o centro. É onda que a gravidade, desta vez da realidade social, fez levantar justamente do Complexo da Maré.

V.

Como gritaram na última terça-feira (14) as redes e as ruas, meia década, de fato, é tempo demais para se matar diariamente uma mesma pessoa. Lágrima demais, sal demais, mar demais. Durante estes 5 anos — mesmo tempo em que a criança que eu fui levou, desde que nasceu, para conhecer o mar —, tentaram matar Marielle de novo, assassinando seu corpo, sua memória, sua reputação. Exatamente como ensejou fazer o deputado mineiro transfóbico, quando ainda era vereador de Belo Horizonte, ao compará-la ao torturador da ex-presidenta da República.

Entretanto, durante esta meia década, Marielle também se manteve viva como nunca. Diferentemente de “Onde está o Amarildo?” — que caiu no esquecimento, assim como o corpo torturado, assassinado e desaparecido num morro carioca com vista para o mar —, não houve nenhum dia sequer em que as pergunta “Quem mandou matar Marielle e Anderson? E por quê?” deixassem de ser feitas.

Além disso, uma das razões que permitiram a mudança de rumos nas últimas eleições é o fato de que Marielle vive. Anielle Franco se tornou ministra da Igualdade Racial não porque Marielle foi morta, mas porque Marielle vive. Flávio Dino, ministro da Justiça, instaurou força-tarefa para desvendar o duplo homicídio não porque Marielle e o motorista Anderson Gomes foram mortos, mas porque Marielle vive. A milícia que Marielle combatia e que foi parar dentro do Planalto meses depois de ela ser morta, finalmente foi escorraçada de lá porque, entre tantas questões que tornaram a retomada do Brasil possível, simbolicamente Marielle vive.

Em 2018, ano do assassinato de Marielle, o historiador Luiz Antônio Simas declarou, em entrevista à revista Caju: “Fui criado em uma tradição, a das religiosidades brasileiras de fundamentos afro-ameríndios, em que a morte é muito mais vinculada ao esquecimento do que ao fenômeno biológico. Há mortos que estão mais vivos do que os vivos. Há vivos que estão mais mortos do que os mortos”.

Marielle vive. Alguém como Nikolas Ferreira nem tanto assim.