A vida dos outros

Por que Dom Pedro 2º recusou o Palacete Santa Mafalda quando visitou Juiz de Fora em 1861?

Palacete Santa Mafalda após a reforma (Foto: Gil Leonardi/Agência Minas)

O governador Romeu Zema (Novo) e o secretário de Estado de Educação Igor de Alvarenga participaram na última sexta-feira (24) da solenidade de conclusão da restauração do Palacete Santa Mafalda em Juiz de Fora. As obras custaram aos cofres públicos de Minas Gerais R$ 13 milhões. Fechado desde 2013, o imóvel voltará a abrigar as instalações da Escola Estadual Delfim Moreira.

O intervalo de uma década em que esteve trancando à espera da reforma, embora extenso, não foi seu maior período de inatividade. Entre 1861 e 1904, o Palacete Santa Mafalda permaneceu, por regra, trancado, com aberturas esporádicas e restritas a poucos convidados. A ordem para cerrar suas portas por tempo indeterminado partiu do seu proprietário, o comendador Manuel do Valle Amado.

Após construir o Palacete Santa Mafalda em área nobre de Santo Antônio do Paraibuna (o nome de Juiz de Fora será adotado a partir 1865) para receber o imperador Dom Pedro 2º em sua primeira visita oficial à jovem cidade em junho de 1861, o comendador decidiu doar o imóvel ao monarca.  Qual não foi sua surpresa e de parte da elite local quando o soberano brasileiro recursou o presente para uso próprio e da família real.

O imperador condicionou aceitar o vultoso prédio caso pudesse convertê-lo em uma escola ou um hospital. A proposta foi recusada pelo enraivecido Valle Amado. Considerando o episódio como uma grande vergonha pública e política, ele acabou nutrindo um imenso desgosto pelo acontecido, lançado, segundo jornais da época, uma espécie de maldição contra o palacete: lá, ninguém mais moraria e tampouco o imóvel seria doado, emprestado ou vendido.

Valle Amado morreu em 31 de maio de 1862, menos de um ano após lançar sua maldição, o que não evitou que seu desejo em relação ao palacete fosse mantido. Pouco antes de falecer, ele deu ordens a seu único filho homem, José Maria de Cerqueira Valle, que mais tarde ganharia o título de Barão de Santa Mafalda, para que continuasse a tratar o imóvel da mesma forma, o que foi cumprido à risca.

Somente após a morte de José Maria de Cerqueira Valle, em janeiro de 1904, a maldição chegaria ao fim. Em seu testamento, o herdeiro do comendador Manuel do Valle Amado destina o Palacete Santa Mafalda à Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora. No mesmo ano, a entidade arrenda o espaço ao governo estadual, para que seja instalada a Escola Normal. Três anos depois, já adquirido pelo estado, o prédio recebe o primeiro grupo escolar.

A recusa de Dom Pedro 2º à oferta de Valle Amado se tornou motivo de especulação nos jornais, burburinho na elite juiz-forana e, mais tarde, intrigou pesquisadores. Para entender as muitas interpretações do episódio é preciso saber o que se passava na recém-emancipada Santo Antônio do Paraibuna quando a família imperial desembarcou para uma estada de cinco dias.

“Câmara de Compadres” versus Mariano Procópio

A Vila de Santo Antônio do Paraibuna havia sido elevada à categoria de cidade em 1853, desvinculando-se assim de Barbacena. O tenente-coronel José Ribeiro de Rezende, que mais tarde se tornaria o Barão de Juiz de Fora, foi eleito o presidente do Legislativo Municipal, cargo em que desempenhava as funções de prefeito. Ele foi sucedido em 1857 pelo comendador Manuel do Valle Amado, do Partido Liberal.

A historiadora Patrícia Falco Genovez escreve em “As Malhas do Poder: uma análise da elite de Juiz de Fora na segunda metade do século XIX” que “a Câmara de Vereadores de Santo Antônio do Paraibuna foi na verdade uma Câmara de Compadres que formou grupos tradicionais atraindo para dentro de suas órbitas famílias influentes da localidade”. Isso aconteceu entre os Tostes, que eram compadres dos Halfeld, que também eram compadres do coronel Rezende, que, por sua vez, era compadre dos Teixeira de Carvalho.

A “Câmara dos Compadres” era um espaço fechado à presença de estranhos, sendo o mais notável deles o comendador Mariano Procópio Ferreira Lage. De acordo com Genovez, mesmo com parentesco na cidade com os Lage e os Halfeld, ele não mantinha uma relação devidamente amistosa, tendo em vista problemas de herança. “Era um estranho nos círculos familiares e nas propostas de desenvolvimento para a localidade.”

Mariano Procópio tentou por duas vezes eleger-se para a Câmara Municipal, mas sem sucesso. Na primeira vez, em 1856, quando obteve apenas quatro votos e, na segunda, em 1861, quando não alcançou votos suficientes para suplência. Nas duas ocasiões, concorreu pelo Partido Conservador.

Quando Dom Pedro 2º deixa Petrópolis com destino a Juiz de Fora em junho de 1861, seu compromisso era inaugurar a rodovia União Indústria, construída pelo comendador Mariano Procópio Ferreira Lage, que seria seu anfitrião. Isso não impediu, no entanto, que o também comendador Manuel do Valle Amado, que havia recebido o imperador em 1845 na fazenda São Mateus, se dispusesse a hospedá-lo novamente, no Palacete Santa Mafalda.

A “disputa” para recepcionar Dom Pedro 2º, que envolveu a construção do Palacete Santa Mafalda, por Valle Amado, e o Castelinho (Villa Ferreira Lage, localizada dentro do Museu Mariano Procópio), por Mariano Procópio, retratava duas cidades dentro de Santo Antônio do Paraibuna. A primeira e mais antiga, correspondia ao distrito central, povoada pelos ocupantes da “Câmara dos Compadres”, entre a margem direita do Paraibuna e o sopé do Morro do Imperador (Cristo).

A outra, mais nova, surgiu em volta da residência de Mariano Procópio, no Rio Novo (bairro Mariano Procópio). Separando as duas “cidades” havia uma área consideravelmente extensa e despovoada, um local pantanoso e infestado de insetos, correspondente a partes onde hoje se situam a Avenida dos Andradas e o Largo do Riachuelo.

Jair Lessa em “Juiz de Fora e seus pioneiros” narra que, “dando a impressão de que desejava isolar-se da cidade de Halfeld, Mariano Procópio, de repente, resolve mudar o rumo da estrada, margeando o Paraibuna”. Ou seja, ao invés de passar ao longo da Rua Direita (Avenida Rio Branco), a União Indústria seguia pela então periférica Rua do Imperador (atual Avenida Getúlio Vargas), indo rumo a Marmelos e Matias Barbosa. A mudança azedou ainda mais os ânimos da “cidade velha” com Mariano Procópio.

Palacete Santa Mafalda no início do século XX (Foto: Acervo Maria do Resguardo)

A escolha do imperador

A família imperial chegou a Santo Antônio do Paraibuna no dia 22 de junho de 1861 indo direto para a quinta do comendador Mariano Procópio Ferreira Lage, na “cidade nova”. Entre os grandes fazendeiros, dentre os quais 28 conquistariam o título de barão, apenas três estiveram na recepção: barões de Pitanguy e de Prados. Nenhum representante da Câmara Municipal compareceu.

Como o Castelinho acabou não sendo concluído a tempo, a comitiva do imperador foi hospedada na Casa Grande de Mariano Procópio. Esse fato teria ampliado a esperança do comendador Manuel do Valle Amado em relação ao seu propósito de ofertar ao imperador o Palacete Santa Mafalda.

Então, no dia 23 de junho de 1861, após visitar a Igreja Matriz de Santo Antônio, atual Catedral Metropolitana, onde foi rezada uma solene missa acompanhada de um Te Deum, Dom Pedro 2º atravessou a Rua Direita e se dirigiu ao magnífico palacete erguido por Manuel do Valle Amado, onde aconteceria a cerimônia do beija-mão.

Mas antes de Valle Amado revelar seu plano de doação do imóvel ao imperador, ele presenciou o agraciamento do comendador Mariano Procópio, que declinou da honra em favor de sua mãe, que recebeu o título de baronesa de Santana. Terminada a cerimônia, Valle Amado finalmente revelou seu propósito ao monarca, quando foi surpreendido pela recusa.

Ao tratar do cerimonial do imperador em sua viagem a Santo Antônio do Paraibuna, a historiadora Patrícia Falco Genovez menciona que “a simplicidade e a falta de esplendor da monarquia brasileira, se comparada às casas europeias, ganharam seu revestimento simbólico específico, representando a seriedade, a moral inabalável e a legitimidade abonada pela Constituição e não pelo fausto do cerimonial, ancorado em rígidas regras de etiqueta”.

Nesse contexto, a autora considera ser necessário levar em conta o perfil apresentado pelo imperador: “um homem dado a poucos contatos, de amizades selecionadas e que não sentia-se bem com bajulações”. Tais características dão subsídio as análises que apontam o extremo luxo do Palacete Santa Mafalda como o principal motivo de Dom Pedro 2º ter declinado do presente.

Os relatos de jornalistas e políticos, no entanto, indicam que, no contexto das disputas entre a “cidade velha” e a “cidade nova”, prevaleceu a proximidade entre o imperador e Mariano Procópio. Mais do que isso. Dom Pedro 2º parece ter dobrado a aposta na sua face de modernidade, que o havia levado o financiar e incentivar um empreendimento como o da União Indústria.

Casa do comendador Mariano Procópio (Foto: Arquivo Biblioteca Nacional)
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