Um dos maiores clássicos de se estar em Portugal sendo do Brasil é a diversão absolutamente infantil com as diferenças entre a língua que se fala em um país e no outro, ambas sob o mesmo nome: Português. São línguas bivitelinas, tão parecidas quanto Danny de Vitto e Schwarzenegger naquele filme, “Irmãos gêmeos”, dos anos 1980 (à juventude, peço um Google).
Essa semana mesmo minha amiga Lana foi ao posto de saúde para tomar vacina e teve que pensar duas vezes antes de responder com um desaforo à enfermeira, que indagou: “Ó menina, já apanhaste a pica?” A agente de saúde só queria saber se o imunizante havia sido aplicado, mas a gente (separado) fica repetindo a pergunta até agora, morrendo de achar graça, bem à brasileira. (Estou com um sorrisinho aberto aqui enquanto escrevo). Nem sempre a questão é a palavra em si e o que ela significa, mas sua pronúncia e a potencialidade para o humor de um menino na puberdade. É o que penso sempre quando passo em frente ao restaurante e churrascaria “A Nau”, a alguns quarteirões aqui de casa.
Fora um mundo de piadas de conotação potencialmente sexual, por vezes é difícil entender o que estão dizendo nas bandas de cá, porque a língua soa muito diferente do que temos costume de ouvir. O “r” vibrado, o “l” que não tem som de “u” como o nosso, o “sc” que se torna “x” (esse eu amo): “fomos à piXina”. Sem xenofobia, com boa vontade e bom humor, nos entendemos ou, como diriam aqui, nos “percebemos”, pelo menos a maior parte do tempo.
Mas certos idiomas são ditos, escritos, lidos e vividos da mesmíssima forma em qualquer canto do mundo. Assim é a misoginia, língua oficial do patriarcado, que une os homens do planeta por um código comum como o Esperanto jamais poderia. Em Portugal não seria diferente. E fui lembrada disso a todo instante no mês passado, com o caso do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, professor da Universidade de Coimbra, e uma das maiores referências do mundo em estudos que questionam o eurocentrismo dos saberes, entre muitíssimas outras coisas.
Os relatos sobre Boaventura contam a mesmíssima história que ouvimos, lemos e vivemos inúmeras vezes. O machismo, além de tudo, é bem pouco criativo: um homem com algum poder (ou convencido de que o tem) tendo certeza de impunidade e pensando que mulheres existem para servir-lhe, sobretudo sexualmente. Marcius Melhem. Bill Clinton. Harvey Winstein. José Mayer. João de Deus. Kevin Spacey. Roger Abdelmassih. Giovanni Quintella Bezerra. Bill Cosby. James Franco. Robinho. Daniel Alves. Gérard Depardieu. Um professor. Meu professor. Seu ex. Meu ex. O atual dela. O próprio pai de alguém. Boaventura de Sousa Santos. Incontáveis nomes, com uma lista que aumenta enquanto digito e enquanto você lê, e que pode conter, literalmente, qualquer homem do mundo. Mas principalmente os que mais se indignam ao ouvirem a afirmação científica de que “todo homem é um estuprador em potencial”, apelando rapidamente para chavões de caça às bruxas. “Nem todo homem”. Balela.
Quando o poder desemboca em abuso, o silenciamento de quem o tem de menos é outro clichê no script do assédio sexual. As vítimas de Boaventura, como a grande maioria de mulheres abusadas sexualmente, falam sobre sentirem culpa, vergonha e medo, além de um abandono institucional e pessoal motivado pelo medo de acusar um homem tido como intocável. Tudo como reza o tutorial do abusador.
Felizmente, há sempre jeitos de dizer quando não se poder fazê-lo da forma convencional. As paredes do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra amanheceram, num dado dia de 2018, cheirando a tinta spray e dizendo: “Fora Boaventura. Todas Sabemos”. O episódio foi relembrado com a recente publicação do artigo “The walls spoke when no one else would: Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia”*, de autoria de três ex-pesquisadoras do CES, vítimas do professor.
O #MeToo revelou famosas e anônimas que também foram sexualmente violadas. Dani Calabresa não está sozinha e nem “estava querendo” ao responder com piada aos avanços inapropriados de seu chefe. Eu estou aqui em Portugal pesquisando justamente mulheres que expõem seus abusadores e/ou sua experiência de violência sexual. As redes sociais estão cheias de denúncias de mulheres cansadas e violadas. Repito: há sempre, sempre sempre, um jeito de dizer, por nós e pelas nossas, pela forma que seja, cedo ou tarde, o conteúdo que nos une universalmente: “Todas sabemos”.
*“As paredes falaram quando mais ninguém mais podia: Notas autoetnográficas sobre acessos estabelecidos sexualmente e por poder dentro da academia de vanguarda”, tradução minha.