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Sobraram bandeiras, faltou Bandeira

Marco 9

1982. Um advogado juiz-forano defende cerca de 160 famílias de trabalhadores rurais na luta pela posse de terra na área da fazenda Mãe Maria, região do “Pau Seco”, a aproximadamente 18 quilômetros da sede do município de Marabá, sendo o primeiro advogado a ganhar causa na Justiça em favor dos trabalhadores rurais sem terra da região. Por causa disso, é executado por fazendeiros locais.

Marco 8

1987. Um professor de matemática é assassinado. Seu corpo tem marcas de tortura, mas a cena do cadáver encontrado na calçada de um colégio de elite em São Paulo é montada para parecer um latrocínio. Na bolsa do docente, da qual parecem ter desaparecido apenas alguns trocados, há uma caixa de slides feitos por ele, que também trabalhava como fotógrafo amador, retratando a paisagem do Pantanal. Estão arquivados, metodicamente, na ordem cronológica em que foram fotografados. Exceto por três deles, que mostram passageiros desembarcando no Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos. Pela lógica, deveriam estar no fim da série, mas, estranhamente, estão bem no meio dela.

Marco 7

Ainda 1987. Um piloto de avião viciado em heroína é encontrado morto numa canoa flutuando no Rio Taquari, entre o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul, com uma bala nas costas e a mão mutilada por piranhas. A jaqueta ensanguentada vestida por ele, com o buraco do tiro, é reconhecida como sendo de um estudante de São Paulo, aluno do professor assassinado. O estudante embarcou numa viagem para o Pantanal, mas desapareceu.

Marco 6

2022. Um indigenista nascido em Pernambuco e um jornalista britânico estavam no Vale do Javari, segunda maior terra indígena brasileira, percorrendo a região para entrevistar indígenas e ribeirinhos para um livro sobre a Amazônia. Ao se deslocarem para a comunidade São Rafael, onde fariam uma reunião com um pescador local, desapareceram misteriosamente. O assassinato, que completou um ano no último dia 5 de junho — irônica e assustadoramente celebrado como Dia Mundial do Meio Ambiente — foi confirmado dez dias depois.

Marco 5

Falei sobre os quatro crimes ao longo do ano passado. Sobre o mais antigo, ao comentar a notícia,  também dada por O Pharol, da condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em razão da omissão em proteger os defensores dos direitos humanos, bem como investigar casos de violência contra eles, ao analisar o caso do advogado e ativista de Juiz de Fora Gabriel Sales Pimenta.

Sobre o mais recente, na entrevista que fiz para a TV Contee (que inclusive já mencionei aqui) com com Eliesio Marubo, do povo Marubo, procurador da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), e com Luis Ventura Fernandez, secretário executivo do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), logo após os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips. “A quem interessa matar Bruno e Dom?”, perguntávamos no programa. Fernandez não titubeou: “às forças que sequestraram o Estado brasileiro”.

Marco 4

Toquei novamente no assunto no último dia 5, dessa vez com o geógrafo Gilberto Vieira, coordenador regional do Cimi em Mato Grosso, enquanto conversávamos, também na TV Contee, sobre o marco temporal. “A despeito da vitória que tivemos em outubro, essas forças ainda sequestram instituições do Estado?” A julgar pelas recentes votações no Congresso Nacional, onde a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 490/07 e as duas Casas endossaram a retirada de poderes dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, a resposta é sim.

Marco 3

Sobre os dois crimes do meio dessa cronologia macabra, tratei de passagem no módulo de literatura infanto-juvenil dos Estudos Matemáticos (o nome irônico do grupo de estudos narrativos mantido pelo projeto Hupokhondría). A descoberta do cadáver do professor Elias, a morte do piloto Bezerra e a desventura do estudante Crânio pelo Pantanal são o mote da obra “Pântano de Sangue”, segundo volume da (hoje) hexalogia “Os Karas”, escrita pelo escritor Pedro Bandeira.

Num determinado momento do livro, o personagem do Senador questiona a Crânio como o governo poderia reservar quilômetros de mata para um povo de duzentos ou trezentos indivíduos quando há milhares de outros brasileiros sem terra, sem ter onde trabalhar, sem ter como se sustentar? E o adolescente responde que, no fim das contas, a terra acaba sendo tomada dos indígenas por algum grande fazendeiro, que derruba a mata, planta capim e deixa algumas reses pastando, sem sequer dar empregos para esses brasileiros sem terra.

Marco 2

As forças que sequestraram as instituições do Estado brasileiro instauram uma CPI do MST e aprovam um projeto inconstitucional sobre marco temporal, enquanto o grande problema do Brasil é a concentração de terras nas mãos de poucos — que não são os povos indígenas.

Marco 1

Talvez tudo fosse diferente no Brasil se houvesse menos culto à bandeira (aquela verde e amarela empalidecendo em algumas janelas) e às bandeiras (sim, a dos bandeirantes e tudo o que representam para a história de genocídio indígena e concentração de terras no país), e mais ao Bandeira. No caso, o Pedro. A coleção Os Karas é um excelente exemplo. Ninguém apoiaria o movimento Escola Sem Partido ou escolas cívico-militares se tivesse lido com atenção “A droga da obediência” e o projeto de dominar a mente de jovens por uma educação autoritária e acrítica. Ninguém adoraria suásticas ou faria chacina em escolas evocando Hitler se tivesse se detido com mais afinco à leitura de “O anjo da morte” e sua denúncia sobre a tentativa de ressuscitar os horrores do nazismo. Ninguém cairia em discursos anticiência ou em charlatanismo pseudocientífico se tivesse se dedicado a compreender “A droga do amor”. E ninguém que tivesse de fato entendido “Pântano de sangue” duvidaria que o assassinato de Gabriel Pimenta lá atrás e de Bruno e Dom logo há pouco estão intimamente relacionados à tragédia yanomâmi escancarada no ano passado, e à associação entre narcotráfico e crimes ambientais (como no Vale do Javari), e à tentativa de enfraquecimento das pastas de Marina Silva e Sônia Guajajara, e a votação do PL 490 pela Câmara dos Deputados, e ao julgamento da tese do marco temporal, retomado e novamente adiado nesta quarta-feira (7) pelo STF.

Marco 0

O marco temporal não existe.