A convite de O Pharol, abro com este artigo uma série com outros três mais, em que tratarei acerca das mudanças que a reforma tributária traz, após a recente aprovação da PEC n. 45, de 2019 pela Câmara dos Deputados, proposta de emenda a cargo do Deputado Baleia Rossi e que fora relatada pelo Deputado Aguinaldo Ribeiro.
Por que um cidadão e uma cidadão devem se preocupar com um tema, carregado de jargão técnico, associado a números que soam incompreensíveis e que geram uma sensação imediata de repulsa, como a tributação?
Justamente porque para várias atividades econômicas nacionais se escondem “icebergs tributários”, imagem que serve para indicar que “apenas cerca de 36% dos tributos indiretos recolhidos no Brasil estão presentes na nota fiscal de venda ao consumidor final”[1], e essa ignorância do montante de tributo que se paga na contratação de serviços e na compra de bens impede a real compreensão de como tributos influenciam nas escolhas econômicas das empresas.
Um sistema tributário ideal é aquele em que os agentes econômicos tomam suas atitudes da mesma forma como se estivessem em um ambiente sem tributação. Trocando em miúdos: ninguém deve decidir investir mais ou menos na sua atividade empresarial ou mudar sua forma de prestação de serviços ou tipo de bem que produz para pagar menos tributos, mas no Brasil isso ocorre, entre outras coisas, poque as empresas pagam tributos, cujos créditos não conseguem se aproveitar, durante as cadeias produtivas.
Apresentado esse chamado a que todos e todas participem do debate e, ainda, antes de explicitar as noções gerais sobre a principal mudança advinda com a PEC 45/2019, na tributação sobre o consumo, a rigor o que era exclusivamente tratado no texto originário desta PEC antes de incorporar algumas matérias da antiga PEC 110, de iniciativa do Deputado Luiz Carlos Hauly, informo o atual estágio da discussão, afasto algumas alegações sobre a ilegitimidade da forma como foi aprovada na Câmara dos Deputados e elenco as motivações socioeconômicas da reforma tributária.
Sobre a PEC 45/2019, ela depende ainda de aprovação em dois turnos pelo Senado Federal, mas tudo se encaminha para que essa Casa Legislativa a aprove, apenas atuando para corrigir imprecisões e contradições do texto legislativo, além de tratar mais detidamente sobre os impactos na Federação, que a reforma ocasiona.
Alguns têm acusado a proposta de reforma tributária de ter sido uma discussão açodada no Parlamento, crítica que não prospera, porque se fala nela há décadas, e, no caso específico da PEC 45/2019, basta ver a data de sua propositura para compreender que é um texto que apenas no Congresso Nacional está há cerca de quatro anos sendo debatido.
Um legislador ou uma legisladora da atual legislatura poderia dizer que precisaria de mais tempo para conhecer a matéria?
Não, porque alterar o sistema tributário nacional é tema discutido na sociedade e nos meios políticos há décadas, sendo consenso a necessidade da alteração, para que o Brasil se torne competitivo em relação a outros países e corrija distorções na economia interna, motivadas pelas fraticidas guerras fiscais e intolerável complexidade.
O que quero dizer é que se pode discordar da reforma tributária por fundamentos vários, a partir das visões de Brasil de uma ou outra pessoa, mas se escorar na ausência de debate na reforma é sem-sentido.
Recorde-se, para se dimensionar o problema existente e a urgência de sua solução, que o Brasil ocupa a insultante 124ª posição entre 190 países no quesito facilidade de negócios, segundo a pesquisa Doing Business 2020, a cargo do Banco Mundial; e a deplorável 184ª posição no quesito pagamento de impostos.
Na prática, o contencioso tributário, em moeda, chega a algo próximo 75% do valor do PIB brasileiro, ou seja, do que o país gera anualmente de renda. Na OCDE, o país que tem um contencioso tributário mais alto não consome nem 0,3% de seu PIB.
O sistema tributário nacional deu errado, mas muito errado mesmo. Seguindo o provérbio alemão que “o Diabo mora nos detalhes”, as especificidades de se considerar algo como serviço ou não, como água de colônia ou perfume, geram menor ou maior pagamento de tributos no Brasil.
Daí que se configurem absurdos, como a mudança da qualificação de um chocolate para biscoito waffer, como forma de se reduzir pagamento de IPI, a discussão eterna sobre o que seria insumo para fins de PIS e COFINS, longos anos de debate no STF sobre softwares serem bens ou serviços e as infindáveis discussões para aproveitamento de créditos de ICMS nas exportações, tudo isso a sugerir que vivemos num manicômio tributário, na consagrada expressão de Alfredo Augusto Becker, um dos maiores tributaristas de nossa história.
Vivemos o Brasil dos muitos tributos, onde pagamos até para pagar tributos, e esses se constituem em custos, que oneram o processo produtivo demasiadamente.
Tal oneração se dá, porque PIS, COFINS, ICMS, IPI e ISS, apesar das promessas constituintes ou legais de serem não-cumulativos em algum grau e para alguns contribuintes, vão sendo repassados ao longo da cadeira produtiva, sem a devida compensação com etapas anteriores.
Mundialmente, em quase 180 países, a tributação sobre o consumo é neutra, ou ao menos tende a ser, porque economia e direito são ciências sociais aplicadas, cuja dimensão de surpresa afasta certezas matemáticas.
Ainda, sim, países como Austrália, Nova Zelândia, Itália, África do Sul, Índia, Argentina, Chile, Peru, Angola e tantos outros mais, com proximidades e diferenças do Brasil, pelo aspecto da segurança jurídica tributária, são muito mais interessantes para receber investimento externo, pois neles se pode prever a carga tributária de operações com bens e serviços.
Todos adotam tributos sobre o consumo chamados de IVA – Imposto sobre Valor Agregado ou sobre Valor Acrescido – ou GST – Good and Services Tax -, que colocam o consumidor como o verdadeiro contribuinte, quem arca com a tributação, sendo ela ocorrida no destino.
No Brasil, porém, por mais que tributo seja custo repassado no preço final, a complexidade do sistema tributário nacional maquia tal fato, gera distorções, como quando determinado prestador de serviços ou circulador de mercadorias acredita que tomou crédito de uma operação anterior, fazendo seu cálculo para repassar o custo ao consumidor, sendo surpreendido com decisões administrativas ou judiciais que glosam ou impedem seu creditamento.
É tanta distorção que, segundo Marcos Lisboa, dificilmente se conseguem calcular efetivamente os custos tributários em cadeiras produtivas mais alongadas e complexas.
Ruim para o setor privado, péssimo também para o consumidor que, sem saber quanto verdadeiramente paga de tributo, ou cai na balela de chutar valores e apontar um inconformismo geral, que de tão banalizado não é levado em conta; ou nem se apercebe da existência do tributo embutido no preço de bens e serviços.
A PEC 45, de 2019, tenta corrigir as distorções da tributação sobre o consumo, substituindo cinco tributos – PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS – cria dois tributos – o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), pelos artigos 156-A e inciso quinto do artigo 195, a serem incorporados na Constituição de 1988.
Espera-se que haja uma mudança na lógica econômica brasileira, inclusive com as pessoas sabendo no momento da compra de bens e serviços o quanto estão pagando a título de tributação sobre o consumo, calculando-se os tributos por fora, numa sistemática parecida com o Sales Tax norte-americano, mas sem os riscos de sonegação que esse último modelo tem.
Trata-se de uma medida que, no futuro, poderá empoderar todos os contribuintes, munindo-os de dados da realidade sobre o tamanho da carga tributária global e setorial.
Do ponto de vista do setor produtivo, a promessa de uma tributação neutra e não-cumulativa acabaria com as celeumas várias sobre quais créditos – tributos devidos em operações anteriores – podem ou não ser compensados.
Isso tudo graças a um dispositivo a ser incorporado ao art. 156-A, § 1º, V, da Constituição de 1988, diretamente relacionado ao IBS, mas aplicável à CBS pelo § 16. do artigo 195.
Argumenta-se que a tributação sobre o consumo estaria sendo aumentada, o que carece de fundamentos, a nosso ver.
A um, porque a transição prevista na PEC, com substituição gradual dos “tributos velhos” pela CBS e pelo IBS, cria mecanismos para se respeitar a carga tributária global existente.
A dois, porque a emenda constitucional garante a permanência do SIMPLES, regime simplificado de tributação a qual aderem a maioria dos contribuintes brasileiros, ofertando-lhes a possibilidade de escolher pagar CBS e IBS para tomar crédito e criando uma sistemática de aproveitamento dos créditos de quem adquira bens ou serviços de pessoas optantes do SIMPLES.
Isso tudo gera a sensação de que poucos setores ou operações serão onerados, e, no melhor dos cenários, pelas longas regras de transição, se realmente os investimentos no Brasil se intensificam com aumento do PIB, talvez nem haja oneração setorial.
A três, porque estudos econômicos sérios mostram como pode haver redução na tributação sobre telefonia celular, pacote de TV, Internet, eletrodomésticos, vestuário e até aquisição de carros e, como esses representam gastos que impactam mais a renda das famílias brasileiras, inclusive as mais pobres, o IBS especialmente se torna vantajoso, ainda que venha com a alíquota-padrão de 25%, que se anuncia[2].
Tributar pelo destino, esclarecer que quem paga o tributo é o consumidor, daí retirando a consequência de que é preciso que ele ou ela saber o quanto paga, e estabelecer um ambiente de negócios, no qual o setor produtivo desonere suas cadeias produtivas da tributação usualmente não compensada, indicam uma verdadeira revolução.
No próximo artigo se vão apresentar noções mais específicas sobre o IBS e a CBS, apontar alguns desafios federativos, sobretudo para a gestão compartilhada entre Estados e Municípios da competência para criar e efetivamente arrecadar o IBS
Nos dois artigos seguintes, ainda se cuidará de como a reforma mexe com IPVA, IPTU, COSIP, ITCMD e o que se pode esperar do imposto seletivo sobre a “produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente (artigo 153, VIII, da Constituição de 1988), sem desconsiderar outras questões importantes do novel Sistema Tributário Nacional que se quer inaugurar entre nós.
[1] FLEURY, Eduardo. A matemática, os números e a reforma tributária. In “Valor Econômico”, edição de 11 de abril de 2023.
[2] Idem.