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Reforma tributária: o que pode mudar no preço do que consumimos?

Algumas das principais perguntas sobre a reforma tributária são as seguintes: a carga tributária brasileira vai aumentar? Haverá reajuste nos preços de bens e serviços? A guerra fiscal entre os Estados finalmente acabará? Minha cidade vai perder ou aumentar sua arrecadação? Para respondê-las, vamos a algumas premissas de análise.

Qualquer serviço público a que temos acesso, uma liberdade de que usufruímos, todo direito fundamental que exercemos e as políticas públicas compartilhadas socialmente custam dinheiro.

Poder transitar livremente por ruas, circular com nossos veículos, coisas que parecem corriqueiras e que nos soam como naturais, dependem do aparato estatal, mantendo polícias, sistemas de justiça, entre outras instituições.

Ser atendido num pronto-socorro por conta de uma emergência, vacinar-se contra doenças que podem ser fatais, ter educação básica, gozar de tratamentos médicos preventivos, aspirações genuínas de todas as pessoas, dependem ainda mais claramente de instituições estatais.

E de onde vem o dinheiro para custear tudo isso? Fundamentalmente das receitas privadas, já que a intervenção estatal direta na economia, com o próprio Estado tendo empresas ou comercializando algo seu, é exceção no mundo de hoje.

O tamanho da carga tributária de um país é compatível com as demandas populacionais existentes, salvo em casos excepcionais, como no Qatar, cuja tributação é pouco mais de 11% do PIB, graças à sua produção e à exploração de petróleo e gás.

Não se desconhece que exista ineficiência estatal em países, como o Brasil, mas sua carga tributária chegar a mais de 30% do PIB tem a ver com as opções constitucionais feitas para custear, além das liberdades básicas, direitos sociais para uma parte expressiva da população, que é pobre ou miserável.

Aumento de carga tributária advém de expansão de gastos ou de perda de arrecadação, essa última motivada geralmente por recessão econômica. Uma reforma, que apenas restabelece competências tributárias, não aumenta carga por si própria, pois cabe aos entes o estabelecimento de alíquotas dos tributos.

Mas como muito se tem dito sobre uma alíquota de IBS/CBS beirando a 30%, devemos ir ao texto jurídico para desfazer confusões.

A PEC n. 45/2019, em seu artigo 129, parágrafo terceiro, durante o período de gradativa transição do regime atual para a implementação final da CBS e do IBS, prevê a “manutenção da carga tributária”, obviamente, do que é tributado pelos cinco tributos sobre o consumo atualmente existentes (PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS).

Trata-se, a meu sentir, de uma boa solução de compromisso, embora nada impeça que haja aumento sobre outros tributos da competência de cada um dos entes.

Respondida à primeira pergunta, passa-se à segunda questão acerca do possível aumento de preços causado pela reforma tributária.

Ora, uma resposta óbvia, intuitiva e apressada seria: não, pois a carga tributária global sobre o consumo será mantida.

Ocorre que, como a reforma tributária acaba com uma infinidade de regimes especiais, favores fiscais, isenções, a cargo da União, dos 26 Estados, do Distrito Federal e dos 5.568 municípios brasileiros, setores serão impactados de forma diferente e, agora reforçando a obviedade da resposta, alguns desses poderão ter sobre seus bens e serviços maior tributação.

Para compreender melhor o tema, é interessante analisar, uma vez mais, a mudança que a reforma traz, no sentido de que quem pagará o tributo será o consumidor.

Sabe-se que, no caso da maioria dos países, as receitas privadas se constituem em renda, elevada a uma medida econômica que se tributa para custear todas as atividades estatais. Mesmo quando se tributa o consumo, no fundo se está tributando renda: renda consumida, é verdade, mas, ainda sim, renda.

Os sistemas tributários são alicerçados mundialmente de uma forma que o Estado tributa a renda, seja diretamente, por meio das retenções a receitas auferidas durante um ano e pelo encontro de contas que se faz com a declaração anual de ajuste de imposto de renda; seja indiretamente, quando ela é utilizada para se consumir um bem ou serviço.

No que toca ao consumo, então, são os consumidores, contratando serviços ou comprando bens, que devem arcar com os tributos, de modo que sua renda consumida seja tributada.

Para isso realmente funcionar, em quaisquer cadeias produtivas, das mais simples às mais complexas, é necessário que não haja tributos cujos custos não possam ser repassados ao consumidor.  

Não é o que ocorre atualmente no Brasil, porque, embora qualquer prestador de serviço ou vendedor de bem embuta no seu preço o que paga a título de PIS, COFINS, IPI, ICMS e ISS, muitos óbices jurídicos impedem o aproveitamento dos créditos, impactando a própria precificação dos custos tributários.

Por exemplo, um hospital que contrata um serviço jurídico não pode tomar isso como um crédito para deduzir do que deve pagar a título de PIS e de COFINS. Economicamente, isso impacta no preço dos serviços médicos.

A criação da CBS e do IBS pela reforma tributária, como já tratado no artigo anterior e melhor explicado agora, aposta na neutralidade tributária de qualquer cadeia produtiva, na medida que o tributo sempre será arcado pelo consumidor final, com os tributos sobre consumo devidos nas etapas anteriores antes da compra de bem ou prestação de serviço final devendo ser aproveitados pelos agentes econômicos.

Eurico Diniz de Santi, jurista que é um dos grandes artífices do texto originário da PEC, sugere que se criou uma verdadeira imunidade da tributação sobre o consumo para a cadeia produtiva.

Essa imunidade da cadeia, benfazeja, não impede que, em alguns setores, os preços de serviços e bens aumentem, em decorrência da nova tributação.

A bem da verdade, a própria inserção no artigo 9º na PEC de nove incisos, prevendo alíquotas reduzidas para CBS e IBS sobre determinados bens e serviços, indica que há impactos maiores e menores sobre determinados setores.

Nesse sentido, a advocacia tem se queixado de que a previsão da alíquota padrão de IBS na contratação de um serviço advocatício por uma pessoa física, tomando como referência uma alíquota entre 20% e 30%, gerará aumento do preço da contratação de um divórcio, por exemplo, eis que o cliente pagará o valor contratado mais o IBS devido.

Estima-se que, regra geral, os serviços contratados de profissionais liberais por pessoa física serão onerados, pois, como se trata de cadeias produtivas únicas ou muito simples, torna-se impossível a tomada de créditos.  Tal fato não justificaria uma alíquota reduzida para todos esses tipos serviços?

A princípio não, porque isso implicaria se afastar do ideal de neutralidade, uma vez que a cada alíquota reduzida dada – espécie de favor fiscal constitucionalizado conferido para alguns – tem que se aumentar a carga tributária de quem consome bem ou contrata serviço sob a alíquota padrão, ou seja, a maioria das pessoas.

De qualquer modo, pode-se responder que, sim, é provável que haja aumento de preços sobre serviços contratados de profissionais liberais por pessoas físicas e talvez para alguns bens muito específicos, mas para os demais bens e serviços não se vê fundamento para cogitar de aumento.

Fazer essa conta de aumento não é tarefa fácil, até porque a mudança de sistema nacional tributário deverá gerar mais investimentos internos e externos, promovendo um aumento do PIB, do ponto de vista macroeconômico, e ganhos de escala para os agentes, numa perspectiva microeconômica, que podem reduzir esse impacto, forçando para baixo alguns preços.

Por mais que saibamos a dificuldade entre nós, brasileiros e brasileiras, de levar ao preço redução de tributos, estamos a refletir jurídica e idealmente sobre o texto da reforma tributária.

Respondo, finalmente, às duas últimas questões, primeiramente afirmando que, ao se vedar tanto para a CBS, quanto para o IBS, qualquer “concessão de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais relativos ao imposto ou de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, excetuadas as hipóteses previstas nesta Constituição”, acaba-se com o maior flagelo do federalismo fiscal brasileiro: a guerra fiscal na busca da atração de empresas, via reduções ou isenções de ICMS e ISS para aquelas instaladas em seus territórios.

A Zona da Mata mineira, em geral, e Juiz de Fora, em especial, sofreram muito com isso nas duas últimas décadas, perdendo investimentos que naturalmente seriam feitos em seus territórios – pela infraestrutura, pelo mercado de trabalho e pela própria localização existentes -, em detrimento das cidades do Estado do Rio de Janeiro próximas, que se tornaram “atrativas” graças à chamada “Lei Rosinha”.

Nos novos artigos 156-A, § 1º, X, e 195, § 15., sepultam-se finalmente as guerras fiscais no Brasil, verdadeiras máculas em nosso federalismo.

Por último, chega-se à indagação sobre se haverá aumento de arrecadação para a maioria dos municípios e Estados brasileiros, o que sugere superar certa concentração atual de ICMS e ISS no poder de alguns Estados e municípios brasileiros.

Simulando vários cenários de crescimento econômico mais ou menos otimista e se baseando na ideia de que as regras de transição garantem um seguro-receita nos primeiros 20 anos de transição, analistas do IPEA apontam que apenas 16 municípios brasileiros “com altíssima arrecadação per capita, em função de distorções na distribuição da cota-parte do ICMS ou da guerra fiscal do ISS” poderiam ter perdas, mesmo assim apenas relativas em face do aumento projetado do PIB[1].

A maioria dos municípios brasileiros hoje consegue receitas mais da redistribuição via FPM e das cotas-partes de ICMS do que propriamente da cobrança de seus tributos, mormente do ISS, IPTU e ITBI.

Por isso, cunhou-se a ideia de que muitos municípios não exercem esforço fiscal próprio, muitas vezes se ancorando na carona que tiram das arrecadações estaduais e federal.

É claro que muito disso, a par do problema da proliferação de municípios, deveu-se a um modelo de cobrança de ICMS na origem, nos últimos anos temperado para alguns casos com cobrança no destino, mas sem resolver a distorção; além da repartição constitucional de competências no sistema tributário atual, que não dá a possibilidade de municípios cobrarem imposto sobre compra e venda de bens.

A reforma corrige ambos os problemas, dando competência para tributar também a venda de bens pelos municípios e acertando que seja para ela, seja para a prestação de serviços, vale a tributação no destino.

Abre-se, portanto, caminho para a busca de esforço fiscal próprio e, tirando os dezesseis municípios privilegiados atuais, irá aumentar ao longo das próximas décadas a arrecadação de todos os demais, onde residem 99% da população brasileira, inclusive como será o caso de Juiz de Fora.


[1] GOBETI, Sérgio; ORAIR, Rodrigo Octávio; MONTEIRO, Priscila Kaiser.  Impactos redistributivos (na Federação) da reforma tributária. In: “IPEA: Carta de conjuntura, número 59 – Nota Conjuntura 17 – 2º trimestre de 2023”, p. 13.