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Colunas

Vale o quanto (não) pesa

I.

Quando eu tinha 8 anos, minha mãe me deu um par de sapatos pretos. Era um par de sapatos de couro, com algumas costuras que desenhavam formas ornamentais circulares, parecido com um par de sapatos de garota crescida. Adorei aquele par de sapatos, mas ele me apertava os dedos. “Vamos trocar”, minha mãe deve ter dito, rebocando-me pelo elevador panorâmico chique para o segundo andar de onde, três décadas atrás, funcionava o Del Center. Pediu um número maior, a vendedora trouxe, mas só tinha na cor marrom. “Quer levar ou quer ficar com o preto?” O marrom era mais confortável, mas o outro combinaria com o vestido preto e branco novo que eu usaria na minha festa de aniversário de 9 anos. Escolhi o preto. Passei uma parte da festa sentada na escada do portão de casa, pedindo só pêra na brincadeira de salada mista, enquanto meu dedinho doía. Só usei o sapato essa vez.

II.

“Guarde uma calça jeans que você gosta muito”, foi o conselho de uma nutricionista uns 7 anos atrás, “e use como meta a vontade de entrar nela de novo”. No caso, eu já guardava: uma calça que me servira uma década antes e que já não passava mais pelos quadris. “Vai voltar a servir”, prometi. E serviu. Mas apenas para me lembrar que não.

III.

“Você trabalha com algo em que precise usar o raciocínio?”, perguntou a endocrinologista. “Porque esse medicamento prejudica um pouquinho a cognição.” Era um anticonvulsivante, usado para combater manifestações epilépticas e também evitar crises de enxaqueca. Como também age como estabilizante de humor, passou a ser receitado, off label, como remédio para emagrecer. Respondi que “pelamordedeus, sim, preciso”. Nos últimos meses de escrita da minha tese de doutorado, referia-me à necessidade de raciocínio, não à dose diária de 1/4 do comprimido, ainda que mínima, que ela me receitou. Mas tomei o remédio mesmo assim.

IV.

Semanas atrás foi um nutrólogo que me receitou o remédio da moda, aquele de injeções subcutâneas diárias a serem aplicadas na barriga. Dias antes, a Agência Europeia de Medicamentos iniciou uma investigação depois que a reguladora de saúde da Islândia sinalizou três casos de pacientes que o tomaram e tiveram pensamentos suicidas (que também constava na bula do anticonvulsivante) ou de automutilação. “Não estou muito segura de tomá-lo”, admiti a uma pessoa que passou pela experiência. Ela me respondeu que eu não teria efeito sem ele, mas me garantiu que é tranquilo. Parou de  tomar por questões financeiras (o negócio é bem caro). E também porque não conseguiu atingir a dosagem máxima recomendada, porque vomitava demais. Tenho obesidade, não transtorno alimentar. Mas, aparentemente, o objetivo da injeção milagrosa (que não pretendo tomar) é simular um.

V.

Tenho o corpo muito parecido com o da minha mãe, da minha prima, da minha tia, da minha avó. Tenho uma alimentação bem mais saudável hoje do que quando era uma criança/adolescente magérrima, mas que vivia a base de lanche, ultraprocessados e leite condensado. Apesar de ter me descrito como sedentária várias vezes, isso não é de todo verdade. Posso não adorar fazer atividades físicas, posso ficar pouco tempo em uma única modalidade, mas faz anos que, de um jeito ou de outro, estou sempre tentando praticar alguma coisa. Nada disso parece suficiente, porém. O espelho, as fotografias, as redes sociais, o padrão de beleza, até o receituário médico me lembram constantemente de que não importa se tive um filho, se amamento, se estou ansiosa, se tenho um biotipo. O que interessa é que meu corpo não voltou para o lugar. Mas que lugar?

VI.

Na infância, escolhi, equivocadamente, o sapato errado, mas nunca cogitei cortar os dedos ou o calcanhar para que ele deixasse de me apertar. Por que, aparentemente, deveria fazer isso para caber numa calça jeans? É a calça jeans que deveria caber em mim.