É um lugar-comum a gente dizer, quando discute temas de direitos humanos, de igualdades e questões sociais, que estamos falando para “nossa bolha”. “Quem precisava ouvir isso, não ouve”, “estamos sempre falando para pessoas iguais a nós”, “temos que furar a bolha”, “vivemos numa bolha”… quem nunca?
De fato, a maioria das vezes em que temas que tratam de ter um mundo mais igualitário e justo são debatidos, isso acontece entre gente que tem no mínimo uma predisposição para querer que esse mundo exista. Quando se trata, então, de empreitadas acadêmicas neste sentido, é inevitável e frustrante a sensação de que as grandes discussões por mais justiça social ocorrem entre pares. Ainda que essas discussões sejam importantíssimas para os motores de mudança efetiva. Ainda que a educação seja o único caminho possível para a transformação social. Ainda que haja inúmeros projetos de pesquisa e extensão que ponham a mão na massa para melhorar a vida das pessoas. Ainda que com muitas desigualdades e esquemas de privilégios na Academia. Ainda que com exceções que confirmam a regra da bolha e lancem, por exemplo um argumento safado tipo “racismo reverso” em um evento de Ciências Sociais ou área que o valha.
Ainda com todos esses “Ainda que”, fica quase sempre a sensação de que estamos dizendo coisas para pessoas já habituadas a ouvi-las. Quase sempre.
Recentemente, tive a oportunidade inacreditável de ir a um congresso em Lubango, a cidade mais populosa do sul de Angola, com 876 339 habitantes, uns 250 mil a mais que Juiz de Fora. Algo só possibilitado porque toda a viagem foi financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), uma espécie de Capes de Portugal. Como agora integro um grupo de pesquisa aqui da Universidade de Aveiro, me qualificava para ser bancada pela instituição.
Aí começam algumas diferenças. Só por isso, saí totalmente da minha bolha brasileira de pesquisa. No Brasil, não sou bolsista, sempre conciliei o trabalho com meu doutorado e mesmo meus amigos bolsistas mal conseguem R$ 50 de auxílio para inscrição em algum evento acadêmico. Em termos científicos e acadêmicos, todo este meu período em Portugal tem me mostrado o quanto o Brasil deve nada à colônia. Mas eles têm algo crucial e que historicamente nos falta: dinheiro para investir em ensino e pesquisa. Tanto que me mandaram à África. Eu, que apesar de integrar um grupo português, não sou aluna da universidade daqui. Eu e mais 13 pessoas do grupo. Essa é a quantia de dinheiro que eles têm.
Mas voltemos a Angola. O congresso foi da Rede Internacional de Estudos Culturais (Riec, e nossa recepção foi impecável, do hotel às salas de apresentação no Instituto Superior Politécnico Independente (Ispi). E as equipes de lá foram – por falta de uma palavra melhor – perfeitas: em eficiência, acolhimento e carinho. Mas foi também neste evento que eu e meu grupo fomos expelidos de nossa bolha, o que é bem mais difícil do que quando a gente pensa quando romantiza o fato sem pensar nas complexidades que ele implica.
E parte dessa dificuldade vem de questionar nossas próprias certezas, convicções e saberes. Nada mais adequado para um congresso como o que estávamos. Numa das muitas mesas da minha orientadora, presidente da Riec e referência mundial em Estudos Culturais, ela falava sobre o papel das pesquisas da área em ecoar discursos que não são ouvidos, em desnaturalizar o que é tido como “senso comum”: a heteronormatividade, uma suposta superioridade masculina e branca, o eurocentrismo, e uma lista de coisas que tornam, historicamente, o mundo pior e mais desigual.
Pois bem, num dado momento, um professor de Matemática (citando porque seria grave DEMAIS se fosse de alguma área de humanidades) pediu a palavra. Disse que ainda estávamos em um país em que “homem gosta de mulher” e “mulher gosta de homem” e perguntou à minha orientadora se, então, os Estudos Culturais, ao defenderem liberdades como “homem com homem” e “mulher com mulher” defendiam também liberdades como discursos racistas. Uma pergunta acusatória, violenta e armada como uma arapuca argumentativa, criando falsos parâmetros de comparação. E mais: enquanto perguntava, o homem olhava para seus pares e ria, como se quisesse exibir o feito de alguma forma.
Sagaz, a professora questionou se o gajo (olha eu, colonizada) queria a resposta longa ou curta, ao que ele optou pela segunda. E ela prontamente respondeu: “Não”. E desligou o microfone. Foi a melhor devolutiva possível. Não dá para tentar dialogar com uma nítida intenção de ataque. Um belo exemplo do meu mantra maior na vida: escolha suas batalhas. Aquele cara não estava ali para debater. Não com a professora. Minutos depois, no café, ele conversou sobre o tema e a sua pergunta em outro tom, com um docente, um homem, aqui da Universidade de Aveiro.
Mas muito mais importante do que a misoginia e a homofobia explícitas na pergunta do homem, e no questionamento de sua atitude individual, está em pensar as estruturas que o levaram a perguntar o que perguntou, e da maneira como perguntou. E isso é algo de fora da bolha que eu vou levar pra vida: sair do meu lugar privilegiado e pensar além dos incômodos, da indignação e até das violências que eu sofro, sempre que possível.
Neste contexto, a simples presença da minha orientadora naquela mesa, como presidente da instituição que nomeia o congresso, é uma afronta para homens como aquele da pergunta. Uma mulher nesta posição, numa sociedade extremamente patriarcal e fortemente atravessada por discursos religiosos que justificam a submissão feminina como “vontade de Deus”. Uma mulher não apenas branca, mas portuguesa, em um lugar de destaque, referência e reverência. É jogar sal em feridas ainda abertas.
Se a democracia brasileira é jovem, a angolana ainda está sendo concebida. Angola só teve sua independência de Portugal onde nasceu minha orientadora em 1975. Minha mãe já tinha 20 anos. No mesmíssimo ano, o país entrou em uma longa guerra civil que durou até 2002, matando mais de meio milhão de pessoas e mergulhando o país numa profunda crise humanitária. Em 2003, meu primeiro ano de faculdade, 20 anos atrás, as Nações Unidas estimaram que 80% dos angolanos não tinham acesso a cuidados médicos básicos, 60% não tinham acesso à água e 30% das crianças angolanas morriam antes dos cinco anos de idade, com uma expectativa de vida nacional inferior a 40 anos de idade. Mais de 100 mil crianças foram separadas de suas famílias. Na melhor das hipóteses, muitas delas provavelmente estão nas universidades hoje, como docentes ou discentes. O buraco do legado colonial é muito mais embaixo.
Entender o que moldou a violência simbólica que aquele angolano dirigiu à minha orientadora não significa compactuar com o ataque. Mas representa uma postura de fato aberta ao diálogo, à compreensão de caminhos que possam transformar o grande cenário de desigualdades históricas em que esse cara foi criado, para que novas gerações possam vislumbrar um futuro com novas configurações. Senão antirracismo é balela, descolonialidade é hipocrisia, Estudos Culturais, Ciências Sociais e humanidades, num sentido mais amplo, não têm sentido.
O que não anula a possibilidade de que o homem seja, individualmente, apenas um babaca, sem qualquer pretensão maior de questionamento, adepto do ataque pelo ataque.
Mas se for o caso, ele é só mais um no mundo, como os tantos que encontramos, em qualquer ponto do mapa. O GPS da babaquice não falha.