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A reforma tributária além do consumo

E se eu lhe contasse que Bono Vox, o icônico cantor da banda U2, é holandês desde 2005, assim como é russo, desde 2013, Gérard Depardieu, o ator francês mais famoso das últimas décadas?

Pois é, eles assumiram essas novas nacionalidades deliberadamente por conta da tributação, como forma de fugir das altas alíquotas de imposto sobre suas rendas na Irlanda e na França.

Nos Estados Unidos da América, fundações são criadas como uma forma de bilionários evitarem que suas fortunas acumuladas se destinem quase em sua integralidade para o Estado, graças à altíssima carga tributária existente sobre heranças.

Como dizem os norte-americanos, as únicas certezas da vida são as mortes e os tributos e, no bojo dessas certezas, é certo que o Estado tributará até a morte, ao menos na forma humana ainda corporificada no patrimônio deixado por quem morre.

A partir dessa constatação e dos dois casos emblemáticos, quer-se mostrar que, além de se tributar a renda adquirida no curso de um ano ou a renda consumida, como explorado nos artigos anteriores, a renda transformada em patrimônio também é tributada.

Por isso, é importante destacar que, embora o debate público sobre a reforma tributária venha se concentrado nas mudanças em como se tributa o consumo, não se pode deixar de discutir o resto do texto da PEC 45/2019, que altera a tributação sobre o patrimônio, além de estender o alcance de imunidades, aproximar a tributação de preocupações ambientais e de saúde pública, estabelecer a possibilidade de instituição de um imposto federal seletivo e de uma contribuição estadual sobre produtos primários e semielaborados.

No atual Sistema Nacional Tributário, são impostos que incidem sobre o patrimônio o IPTU, o ITR, o IPVA, o ITCMD e o ITBI.

Assim, o Brasil tributa a propriedade sobre móveis e imóveis, além da transmissão de bens e direitos, mas atualmente se gravam de uma forma muito amena as heranças brasileiras, quando comparada a como fazem outros países, e se deixa de tributar a propriedade de aeronaves e embarcações, neste último caso por uma decisão equivocada e absurda do Supremo Tribunal Federal[1].

Por mais que críticas sejam feitas sobre os efeitos que podem ser gerados pelo aumento de tributação sobre heranças, propriedade de bens e direitos, mais valiosos, quando não sobre grandes fortunas, a partir de uma perspectiva ideológica mais libertária e que encontra eco em alguns estudos econômicos e comportamentais[2] sobre até que ponto as pessoas aceitam pagar voluntariamente tributos e deles não evadir, fato é que a tributação existe também para atender a um efeito redistributivo, de modo que quem tenha mais renda, imobilizada ou não, deva arcar mais com as despesas públicas, as quais justamente servem para custear serviços públicos e políticas públicas destinadas, sobretudo, a quem tem menos renda.

Mundo afora, tenta-se tributar mais gravemente, proporcionalmente de forma mais intensa, quem possui mais renda, sendo este o fundamento para a instituição de alíquotas progressivas sobre renda ou mesmo para a criação de um imposto sobre grandes fortunas, práticas institucionais criticadas pela potencialidade de os detentores desta riqueza fugirem da tributação.

Ainda que a atual reforma tributária brasileira não toque diretamente nessa questão atual em torno da tributação, ela avança sobre a correção de distorções intoleráveis ainda existentes.

Haverá uma mudança sobre o ITCMD – “imposto sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens e direitos”-, tributo que grava o patrimônio, principalmente na transmissão de heranças. Pela nova redação do inciso VI do parágrafo primeiro do artigo 155, ele “será progressivo em razão do valor da transmissão ou da doação”.

Trata-se de uma alteração que consolidará em texto constitucional entendimento jurisprudencial do STF que, após duas décadas, finalmente decidiu ser possível o ITCMD ter alíquotas progressivas, mesmo que na Constituição atual não haja essa previsão expressa.

A discussão técnica, ao longo dos anos, deu-se em torno de os chamados impostos reais, como os incidentes sobre as propriedades territoriais urbanas e rurais – IPTU e ITR -, o ITBI e o próprio ITCMD, dependerem ou não de uma previsão expressa na Constituição para serem graduados conforme a capacidade econômica (sic, contributiva).

O novel inciso VI constitucionaliza o entendimento do STF, e, na prática, embora a maioria dos Estados já cobre o ITCMD de forma progressiva, alguns não o cobram na alíquota máxima hoje fixada em 8% pelo Senado Federal (artigo 155, § 1º, VI, da Constituição de 1988).

A competência para estabelecer alíquotas continua a ser dos Estados, mas o novo texto pode abrir espaço para as Assembleias Legislativas se debruçarem novamente sobre o ITCMD de cada Estado – forçando a aplicação da alíquota máxima para os que ainda não o fazem -, além de ser possível uma nova rodada de discussão em torno da alíquota máxima a ser fixada pelo Senado Federal.

Frise-se, ainda, que o novo inciso II, ao estabelecer que, “relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde era domiciliado o de cujus, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal”, tentará coibir que herdeiros busquem Estados com menor tributação para elaborar inventário, instalando-se uma nova guerra fiscal.

A reforma tributária tenta também resolver outra grave distorção no sistema brasileiro, que leva à esdrúxula situação de que alguém proprietário de uma aeronave, um barco ou um helicóptero de últimas gerações e avaliados em milhões não pague IPVA, enquanto alguém que tenha um carro popular usado, de alguns poucos milhares de reais, tenha de pagá-lo.

Nesse sentido, o artigo 155, parágrafo sexto, na nova redação da Constituição que a PEC 45/2019 traz, expressamente afirmar estar incluída para fins de tributação do IPVA “a propriedade de veículos automotores terrestres, aquáticos e aéreos”.

É verdade que os legisladores, preocupados com o impacto dessa nova tributação sobre atividades econômicas relevantes para a formação do PIB nacional ou para necessidades básicas dos cidadãos, excluíram do IPVA “a) aeronaves agrícolas e de operador certificado para prestar serviços aéreos a terceiros; b) embarcações de pessoa jurídica que detenha outorga para prestar serviços de transporte aquaviário ou de pessoa física ou jurídica que pratique pesca industrial, artesanal, científica ou de subsistência; c) plataformas suscetíveis de se locomoverem na água por meios próprios; e d) tratores e máquinas agrícolas”.

Além das mudanças em torno da tributação sobre o patrimônio, algo que tem passado praticamente desapercebido no debate público é a ampliação da extensão da imunidade religiosa, compreendida como a vedação a que os entes cobrem impostos sobre patrimônio, renda e serviços das entidades religiosas, para alcançar também “as organizações assistenciais e beneficentes” daquelas na nova redação estipulada pela EC n. 45/2019.

Trata-se de uma clara pretensão da bancada religiosa, forte na atual composição do Congresso Nacional, e como “de boas intenções até o Inferno está cheio”, sabedoria que se colhe do senso comum, a sociedade brasileira precisa discutir qual o impacto tributário desta medida, porque o tributo não pago pelas entidades religiosas pode gerar aumento na tributação tanto sobre o consumo, na fixação da alíquota padrão, frustrando a neutralidade buscada com o IVA-dual (CBS + IBS), quanto sobre a renda de todos nós, brasileiros e brasileiras.

Não existe almoço grátis, como já se demonstrou ao se comprovar que os benefícios fiscais do ICMS, no âmbito da famigerada guerra fiscal, geravam e ainda geram a necessidade de aumento de outros tributos, por isso se deve perguntar qual o impacto em termos arrecadatórios da extensão da imunidade e quais as possíveis fontes para custeá-la, ou seja, quais tributos serão aumentados.

A sociedade precisa sempre se perguntar: quem é que vai pagar a conta de uma tributação favorecida, benefício fiscal, isenção ou imunidade estabelecida para um grupo de contribuintes?

Outra questão interessante que a reforma tributária implicar é correlacionar a tributação a preocupações com a preservação do meio ambiente e de saúde pública mais diretamente.

O Sistema Tributário Nacional, como um todo, deverá observar a defesa do meio ambiente, nos termos do novo parágrafo terceiro do artigo 145, o que coloca o Brasil conforme as modernas e contemporâneas discussões sobre a criação de taxas sobre atividades e produtos nocivos ao meio ambiente e à saúde.

Ademais, o artigo 153, inciso VIII, transforma o IPI num verdadeiro imposto seletivo, de modo que incida sobre “produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei”.

No caso de tributação sobre serviços prejudiciais à saúde, em especial, podem-se aplaudir as boas intenções do legislador, mas internacionalmente a questão, envolvendo o que se convencionou chamar de “tributação do pecado” (sin taxation), é discutível quanto à eficiência do método, forte na hipótese de que “comportamentos baseados em vício qualificam-se como demanda inelástica e, no caso, menos sujeitos a flutuações decorrentes de variação de preço a maior”[3].

Existe o risco de o imposto seletivo se transformar numa forma camuflada para aumento de arrecadação, promovendo-se uma desigualdade que a reforma, em outros pontos, promete solucionar.

Nossa experiência malsucedida sobre a validação constitucional das contribuições sugere cautela.

Afora isso, a própria emenda da reforma tributária, ao cogitar de uma alíquota reduzida para produtos agropecuários (artigo 9º, § 1º, VI) e vedar imposto seletivo sobre esses e quaisquer outros bens e serviços com alíquota reduzida, mostra a contradição entre os propósitos de defesa do meio ambiente e de uma preocupação maior com a saúde pública e o novo Sistema Tributário Nacional que se quer inaugurar.

Finalmente, discute-se o nefasto artigo 20 da Emenda: “Os Estados e o Distrito Federal poderão instituir contribuição sobre produtos primários e semielaborados, produzidos nos respectivos territórios, para investimento em obras de infraestrutura e habitação, em substituição a contribuição a fundos estaduais, estabelecida como condição à aplicação de diferimento, regime especial ou outro tratamento diferenciado, relacionados com o imposto de que trata o art. 155, II, da Constituição Federal, prevista na respectiva legislação estadual em 30 de abril de 2023.”

O parágrafo único do mesmo artigo sugere ser uma “contribuição provisória”, estendendo-se até 31 de dezembro de 2043, mas nossa experiência constitucional-tributária também demonstra que o provisório vai ficando quase definitivo através de emendas ampliando o tempo de vigência de uma exação tributária.

Mais importante, porém, é apontar que essa contribuição pode criar uma fonte de receita para Estados e DF justamente sobre produtos primários e semielaborados, que pela sistemática do IBS e da CBS seriam desonerados por estarem no início da cadeia produtiva e mesmo quando exportados pela imunidade criada para a exportação

Verdadeiro tiro no pé em uma proposta que dizem ter vindo de governadores de Estados com economia fortemente alicerçada no “agro”. Trata-se, evidentemente, de medida contrária e contraditória com a finalidade principal da reforma tributária em alterar a tributação sobre o consumo.

Existem outras medidas no texto da EC 45/2019 a sugerir uma reforma completa no Sistema Tributário Nacional, como uma bem interessante no artigo 18, determinando que, em até 180 dias após a promulgação desta Emenda, encaminhe o Poder Executivo Federal projeto de lei que reforme a tributação da renda e que “eventual arrecadação adicional da União decorrente da aprovação da medida de que trata o caput poderá ser considerada como fonte de compensação para redução da tributação incidente sobre a folha de pagamentos e sobre o consumo de bens e serviços” (caput do mesmo artigo 18).

Com esse quadro esboçado sobre “uma reforma tributária além do consumo”, parece que o desejo reformista da tributação brasileira como um todo está se concretizando, não havendo mais caminho de volta.

A nós, como membros da sociedade, cabe entender o que está mudando e lutar por melhorias reais no Sistema Nacional Tributário, pois ainda há espaço para isso no Senado Federal, mantendo afinal uma “Inquieta Esperança”, como sugerem os versos deste belo poema de Mário Quintana:

“Bem sabes Tu, Senhor, que o bem melhor é aquele

Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.

Nunca me dê o Céu… quero é sonhar com ele

Na inquietação feliz do Purgatório.”


[1] STF sempre insistiu que o IPVA seria um sucessor da antiga TRU (Taxa Rodoviária Urbana), de modo que a expressão existente na Constituição “veículos automotores” abrangeria apenas aqueles destinados ao transporte viário ou terrestre, escapando do conceito as aeronaves e embarcações, inviabilizando sobre elas a cobrança do tributo. Um argumento pragmático também sempre existiu: aeronaves e embarcações se submetem a registro em órgãos federais, e não a Estados e Municípios, o que tornaria difícil a tributação por esses. Para maior compreensão sobre o tema, ver os julgados do STF no RE n. 134.509 e no RE n. 255.111, ambos julgados em 29.05.2002.

[2] Trata-se da questão da curva de Laffer, teoria que embasa estudos econômicos, indicando, em linhas gerais, que as altas de impostos podem gerar perda de arrecadação, ou seja, haveria uma linha inversamente proporcional entre a arrecadação tributária e a alíquota tributária aplicada. No atual sistema tributário brasileiro, é mais difícil empiricamente realizar pesquisas a partir desta perspectiva teórica, entre outros fatores, por conta do caos do sistema tributário sobre o consumo, em que parte dos tributos pago fica oculto às vistas dos consumidores e, dificilmente, é encontrado pelos próprios pesquisadores. Muitas vezes, entre nós, o problema é mais da base de cálculo do tributo do que propriamente sobre a alíquota aplicada, conforme já se demonstrou nos artigos anteriores.

[3] Ver FOLLONI, André Parmo; Florani Neto, Antonio Bazílio; Oliveira, William Batista de. Tributação do vício (sin taxation): fiscalidade e desigualdade sob a aparência de extrafiscalidade. In: “Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC”, vol. 41, jan./jun. 2021, pp. 215-219, disponível em http://www.periodicos.ufc.br/nomos/article/view/41130.