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Ganância e cobiça

Parte correspondente a avareza do obra “Os sete pecados capitais” de Hieronymus Bosch.

“Ela tem muita ganância por dinheiro.”

A fala num volume que extravasava as fronteiras da etiqueta pulava na mesa ao lado como se os vizinhos no restaurante precisassem saber desse pecado da mulher. Que mulher ninguém sabia, tinha entrado na conversa naquele momento de exaltação, que seguiu nos gestos e nas falas, não mais no volume.

O alerta de redundância apitou: ganância por dinheiro? Depois foi ao dicionário descobrir que a revoltada tinha seu ponto. Existe ganância por outras coisas, como poder ou status, mas ela queria deixar claro que a outra era focada no dinheiro. Alerta de redundância desligado, mas dicionário ainda aberto.

Cobiça tinha outro objeto: a coisa. Quem cobiça, cobiça algo, não (ou não somente) uma abstração, como dinheiro (que é papel, plástico ou pix, tudo abstrato). Cobiça um carro, uma roupa, uma mochila maneira ou um brinquedo que não tem ou que viu primeiro e o outro foi esperto e chegou antes. Ou ninguém chegou e ele tá lá, parado no parquinho, e você viu e quer.

Dizia a Vó Izaura que a gente cobiça o que vê. Ensinamento mais sábio do que parece, por se tratar de uma pessoa cega que sabia escolher suas roupas pelo toque, conhecia os tecidos. Depois, o Thomas Harris, que não é neto da Vó Izaura, disse a mesma coisa em O silêncio dos inocentes.

Hannibal Lecter, ao mostrar o caminho para a aspirante a detetive Clarice Starling, diz que o serial killer Buffalo Bill cobiça. Ele sequestra mulheres para pegar a pele delas, como mostravam os corpos encontrados. Se ele cobiça, ele precisa conhecer, por isso era importante saber de onde vinham as mulheres e não onde foram largados os corpos.

A cobiça tem sinonímias interessantes, como ambição ou avidez, que requerem contextos mais amplos. A ambição pressupõe uma trajetória e a avidez uma ânsia por vezes irracional. A cobiça é mais objetiva. Como o desejo e a inveja, palavras que se desenvolvem a partir do mesmo latim: cupiditia. O Cupido é o mensageiro.

Filho de Afrodite, deusa do amor, o Cupido é aquele que vai de arco e flecha acertando bumbuns alheios para que se apaixonem à primeira vista. Quando ele imagina que o casal pode dar match, lança a flecha e pimba: rolou. Cobiça pelo outro e satisfação garantida num piscar de olhos (se ele tiver acertado a segunda flecha).

Nas redes sociais muitos aplicativos têm essa função de cupido. Nasceram para isso, mesmo que tenham ganhado outras funções paralelas, vendendo produtos lícitos e ilícitos ou transformando o match afetivo em trabalho. De todo modo, a sabedoria da Vó Izaura era avant la lettre: basta ver no aplicativo que surge a cobiça.

Quero aquele corpo. Quero aquela blusa. Quero aquele carro. Quero aquele hotel. Quero aquele emprego. Quero aquela boneca. Quero aquele status. Quero aquele tempo. Quero aquela vida.

As curtidas se tornam cobiça e a cobiça se transforma em ganância sem que o usuário perceba. As fotos, sobretudo elas nesta sociedade do olhar, tiram o que é mostrado do contexto. Filtram, palavra não usada por Walter Benjamin, ao fragmentarem a realidade.

A cobiça e, mais ainda, a ganância, dão lugar à ansiedade. Os pecados se transformam em agentes da indústria farmacêutica, igreja da qual o diabo é o principal acionista.