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Colunas

Quantas vezes vítimas?

(Foto: Raíssa Morais)

Na megalomania da Jornada Mundial da Juventude ou no escrutínio público do “você se pôs em situação de risco”, sobreviventes de violência sexual sofrem violações sistemáticas

Um trauma profundo causa sempre o medo de sua reincidência. Como paciente oncológica, sei disso bem mais do que gostaria. O medo de está sempre coladinho no cangote, apanhando nosso passo, arfando feito um cão cansado ao pé da orelha, mandando o recado inconfundível: “eu posso voltar”. 

Com o tempo a gente aprende despistar o cachorro, fazê-lo de besta a correr atrás de um naco de carne inexistente, e vamos vivendo, felizes e quase em distração. Vez ou outra é o vira-lata que nos dá uma rasteira e derruba, lembrando que ter um trauma é um medir de forças, um duelo, um vale-rasteira vitalício, que podemos tomar a qualquer altura de nossa existência. 

Sobreviver a um abuso sexual envolve não só esse temor simbólico de que o maior terror de sua vida ressurja em um gatilho. Há uma revitimização constante, sistemática e impiedosa de quem sofreu uma violação do corpo e de si. Uma violência expressa na culpabilização e no descrédito das vítimas, como se seus corpos e suas vidas valessem nada, não fossem passíveis de enlutamento ante a violência sofrida. 

Nesta semana, aqui em Portugal e no Brasil, lançaram-se holofotes sobre o descaso monumental que se dispensa a vítimas de violência sexual. Deste lado do Atlântico, há uma megalomania com a visita do Papa Francisco, que trouxe milhares de jovens do mundo inteiro a Lisboa para a Jornada Mundial da Juventude. 

As críticas de setores progressistas têm sido muitas. Começam pelos gastos que a tour católica demandou aos cofres portugueses enquanto o país enfrenta uma grave crise de habitação, sobretudo nos grandes centros (há cartazes e textos espalhados: “Menos Papa, mais casa”). Em memes e a sério, há duras reclamações sobre caos urbano que tem sido a invasão de jovens na capital sem que haja vislumbre de retorno financeiro, já que se trata de um público que essencialmente não faz a economia girar, ficando em casas de família e comendo refeições baratas de fast food (e com desconto das redes). Isso sem falar em denúncias de trabalho exploratório nos preparativos da JMJ e de protestos contra a posição católica em relação a gêneros e sexualidades.

Para além disso, é um acinte e um desrespeito que se monte o maior circo católico que Portugal já viu no mesmo ano em que a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica divulgou um relatório apontando que houve, “no mínimo”, 4.415 vítimas de abusos sexuais na Igreja entre 1950 e 2022.

Seria leviano de minha parte dizer que a Igreja Católica deu de ombros para a questão. O D. Manuel Clemente, cardeal patriarca de Lisboa, garante que “o empenho é total em resolver esta questão” e eu me pergunto o que há para ser resolvido depois que milhares de pessoas sofreram repetidos abusos por essa instituição. 

Uma das iniciativas foi garantir que o Papa se encontrasse com algumas das vítimas que cederam depoimentos ao relatório, 13 delas, já no primeiro dia da jornada. Mas fora da programação oficial, para preservar suas identidades. Eu não sei vocês, mas a mim parece uma péssima ideia querer colocar pessoas que foram vitimadas por autoridades de uma instituição diante da figura de maior representatividade que ela tem. Ainda mais “no sigilo”, expressão que certamente tem um potencial de gatilho. Além disso, não há de ser terapêutico ver multidões em festa, ostentando todo tipo de símbolo referente a um espaço em que se sofreu abuso sexual.

É claro, onde há poder há resistência (aqui vai a cota de Foucault), e a recepção do cardeal máximo não aconteceria e, de fato, não aconteceu sem que houvesse protestos. Cartazes, pichações e manifestações também receberam o padre-mór pela capital afora. Um dos grafites viralizou. A princípio, dizia, na Avenida Almirante Reis, “Ainda antes do Papa vir já eu rezava por um quarto aqui!”. Depois de ser pintado, o muro apareceu com novos dizeres, “Os 4.800 abusos sexuais não são tão fáceis de apagar”. E não são mesmo, apesar das tentativas. Pergunte às vítimas.

Pergunte à empresária de BH que foi abandonada bêbada na porta de casa por um motorista de aplicativo, acionado por um amigo que estava com ela. Depois de tocar o interfone da casa da mulher e não ser atendido, o homem deixou a vítima desacordada na calçada, apoiada num poste, como a gente faz com o lixo em dia que o caminhão passa. 

Cinco minutos depois (literalmente), Weberson Carvalho da Silva, de 47 anos, passou, e como quem recolhe lixo da rua, jogou a mulher desacordada em seus ombros. Ele a carregou por mais de três quilômetros, chegando a um campo de futebol onde a estuprou. Um esforço calculado para cometer a violência e tornar consumado o potencial de estuprador que absolutamente qualquer homem oferece a nós, mulheres.

A jovem descobriu o estupro na manhã seguinte, no hospital. E o que poderia ser somente uma ressaca monstruosa se tornou um trauma de que ela nunca vai se esquecer. Até porque ela foi (e será) imediatamente culpabilizada por ele, neste caso específico, porque estava bêbada. Mas assim o seria por qualquer motivo. Pelas roupas que usou, pelo lugar onde estava, pela maneira como fala, pelo andar, pelo olhar. A culpa, no olhar machista e misógino violenta a vítima de novo, e de novo, ao repetir, inventando motivos para o argumento falacioso, que “a culpa foi dela”. Só enquanto escrevo este artigo, procurei os termos “bêbada” e “estupro” no Twitter (estou em negação com o novo nome) e encontro, no topo da busca, a seguinte desinteria verbal:

“todo estupro que aconteceu no mundo foi culpa da mulher” Pensa comigo e vamos seguir sua lógica menina burra: se vc tem certeza que todo homem é um estuprador, então por qual motivo vc fica bebada até cair? com certeza vc gosta de ser estuprada. 1 + 1= 2” (sic) 

Eu entendo (mas não justifica) que o motorista estava em uma situação difícil e não soube o que fazer; eu entendo que o amigo que a colocou no carro estava fazendo o que achava melhor por ela (que teria recusado que ele a acompanhasse, segundo relatos); eu entendo que era de madrugada e o irmão da vítima estava dormindo, por isso não atendeu o interfone. Mas jamais vou entender, diante de qualquer argumento:

  1. Como um desgraçado pode ser sentir no direito de fazer qualquer coisa a não ser deixar essa mulher em paz na rua, e se sentir tão impune a ponto de carregá-la bairro afora para estuprá-la?
  2. Como as pessoas rapidamente buscam argumento para justificar todas as omissões e violências que esta mulher sofreu, perguntando inclusive, como ela se permite chegar a tal estado de embriaguez. Em vez de se questionaram QUEM comete uma atrocidade dessas, e POR QUE vivemos em um mundo que culpa vítimas pelo estupro sofrido e preserva estupradores?

É triste demais que tenhamos que contar com a sorte para não sofrermos violência sexual, bêbadas ou não. E mais triste ainda que um estupro seja só o início de um certeiro ciclo de revitimizações. 

É a cultura do do estupro dando orgulho a seu pai, o patriarcado, ao crescer saudável e forte: responsabilizando sobreviventes de violência e resguardando perpetradores. 

Na Igreja ou nas ruas, em BH ou em Lisboa, – em qualquer lugar, na verdade – , a culpa parece recair sempre sobre a vítima.