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Tem um padre no meio do caminho

Quando uma CPI é instaurada, geralmente a motivação é uma das três: tem alguma coisa errada (a única lícita), tem alguém querendo ganhar alguma coisa, tem alguém atrapalhando alguém a ganhar alguma coisa. Quem é o alguém e que coisa vai ganhar as especulações podem dizer, mas o atrapalhador é o Padre Júlio Lancellotti.

Mais do que o pároco da Matriz Paroquial São Miguel Arcanjo, em São Paulo, o padre é pop porque vai aonde poucos, até das igrejas e, sobretudo, do poder público, têm coragem de ir: caminha no meio do povo da rua. Parece aquele jovem de pouco mais de 30 anos que, uns 2 mil anos atrás, andava entre leprosos. Padre Júlio, com seus 75 anos recém-completados, continuou caminhando entre os párias, inclusive na pandemia, de máscara e com os devidos cuidados que a idade lhe obrigava a ter.

Atuante nas redes sociais e em canais das mídias tradicionais e alternativas, é acolhedor com as palavras e duro nas posições, mostrando que a fragilidade aparente é apenas uma forma diferente de segurar o martelo com que demole argumentos e arquiteturas hostis. Há quem goste, geralmente pessoas com amor ao próximo. E há outros.

Quando a Aids ainda era chamada de câncer gay, ele não temia as pessoas soropositivas (criou lares para acolher crianças com o vírus) e não temia defender gays e todas a letras da sigla. É pelas palavras dele que vem à lembrança Panis et circensis e as pessoas que se preocupam somente em nascer e em morrer, não importando quem matam no caminho:

“O movimento LGBT, a defesa dos trans, dos discriminados, dos presos, da população de rua – que é o amálgama do que não se quer –, dos doentes, dos prostituídos, dos dependentes químicos. Enfim, desses que são considerados os restos que incomodam os que se sentam às mesas”.

O que pasma é serem essas mesas de diferentes tamanhos. Quando o funcionário do IML se recusa a vestir um trombadinha, como testemunhou Lancellotti, ele se coloca numa mesa maior que a do outro. Sem saber que outras mesas o colocam no mesmo lugar do trombadinha. Para o padre, se ao final da música dos Mutantes alguém pedir o pão, ele oferece sem perguntar quem pediu.

Um currículo desses é sempre passível de questões. Se ele cai na mesa da Academia Real Sueca, pode se tornar um prêmio Nobel. Se cai na mesa de um Rubinho Nunes, o vereador do União MBL transforma em Comissão Parlamentar.

Talvez pouco afeito a leituras, de textos noticiosos ou bíblicos pelo menos, o vereador pode não ter entendido o que está fazendo. Talvez ele descubra que pode, com o cargo que tem, trabalhar para melhorar a qualidade de vida do cidadão de mesa pequena que percorre e dorme nas ruas de São Paulo, enfraquecendo o trabalho do padre porque, sem párias, ele teria que rezar missa e só. Ou talvez o vereador seja esperto e, depois dos quatro abandonos nas assinaturas para a CPI, seja deixado de lado por outros colegas e torne-se, ele mesmo, uma minoria, pedindo perdão para o Padre Júlio, que não lhe negará o pedaço de pão. Com o devido tempero da palavra.