
Geralda Farine da Silva foi admitida na Fábrica de Estojos e Espoletas de Artilharia — a Fábrica de Juiz de Fora, atual Imbel (Indústria de Material Bélico do Brasil) — no dia 22 de outubro de 1942, “como condutor de operações, em caráter transitório, com a diária de 8 mil réis, para trabalhar na oficina número 4”. Tinha 27 anos, era viúva e residia com a mãe, Rachel Farine, e a filha, Alice Pereira da Silva, na rua Dom Silvério, 21, em Juiz de Fora.
Em 5 de abril de 1943, Nicolau Gonçalves Izetti, major fiscal administrativo da Fábrica de Juiz de Fora — unidade responsável pelo fornecimento de munições para a FEB (Força Expedicionária Brasileira) —, emitiu comunicado ao seu superior imediato relatando que “o extranumerário diarista nº 894, Geralda Farine da Silva, sem causa justificada, se acha faltando ao serviço desta Fábrica desde o dia 2 do corrente, completando, a 3, mais de 24 horas.”
Uma semana depois, em novo comunicado datado de 12 de abril, o mesmo major informava que “o extranumerário diarista desta Fábrica, nº 894, Geralda Farine da Silva, filha de José Farine, natural do município de Corinto, Estado de Minas Gerais, nascida a 9 de fevereiro de 1915, tendo faltado ao serviço deste estabelecimento desde o dia 2 do corrente, completou, a 10, os dias de ausência que a lei marca para que se constitua e consuma o crime de deserção”.
Com a entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial, em agosto de 1942, os Ministérios da Guerra, da Marinha e da Aeronáutica declararam diversos estabelecimentos fabris como de interesse militar, submetendo seus operários às leis especiais vigentes no período. Por essa razão, o major Áureo José Carvalho, diretor-geral da Fábrica de Juiz de Fora, determinou “a captura ou apresentação da acusada”, promovendo “sua imediata exclusão do quadro de extranumerários diaristas pela condição de ré de crime de deserção”.
Geralda Farine da Silva, extranumerária diarista nº 894, tornou-se a primeira mulher indiciada como desertora no Brasil. A acusação baseava-se no inciso “b” do parágrafo 2º do Decreto-Lei 4.937, de 9 de novembro de 1942, que previa: “Será considerado desertor e como tal julgado pelas leis em vigor, quem faltar ao trabalho por prazo maior de oito dias, sem justa causa.”
O processo de deserção, autuado na Auditoria da 4ª Região Militar, em Juiz de Fora, descreve Geralda Farine da Silva como uma mulher de “cor branca, cabelo castanho claro, olhos azuis, com 1,58 m de altura, nariz afilado, rosto oval, boca média, sabendo ler, escrever e contar, não sabendo nadar, com pequeno defeito na falangeta do indicador da mão direita”.
Um parêntese necessário
O defeito na falangeta do indicador de Geralda Farine da Silva foi resultado de um acidente de trabalho aos 15 anos. Empregada como aprendiz em uma fábrica de chinelos de propriedade de Oscar Rodrigues Pereira, teve o dedo atingido pela engrenagem de uma máquina. O episódio é descrito na tese de doutoramento Pequenos Desvalidos: a infância pobre, abandonada e operária de Juiz de Fora (1888–1930), da professora Raquel Pereira Francisco.
As razões da deserção
No dia 26 de abril de 1943, os oficiais da Fábrica de Juiz de Fora formaram o Conselho de Justiça — responsável por processar e julgar crimes militares em primeira instância — para conduzir o julgamento de Geralda Farine da Silva. O capitão Alfredo Américo da Silva foi nomeado presidente do colegiado, e a relatoria ficou a cargo do capitão Celestino Delgado.
Para a defesa da acusada, foi designado o capitão Paulo Lobo Peçanha, engenheiro formado pelo Instituto Militar de Engenharia. Ele apresentou “as razões da defesa” no prazo de 48 horas — uma argumentação que daria origem a um acalorado embate jurídico nos tribunais militares nos meses seguintes.
Paulo Lobo Peçanha inicia as três laudas que compõem as “razões da deserção” narrando a via-crúcis de Geralda Farine da Silva até se ver oficialmente como desertora. Segundo ele, ela trabalhou na Fábrica de Juiz de Fora até o dia 3 de março de 1943. A partir dessa data, foi afastada por motivo de saúde, conforme atestados médicos, e permaneceu em Juiz de Fora até o final do mês.
Entre o fim de março e o início de abril, Geralda Farine da Silva seguiu para Uberaba, no Triângulo Mineiro, com o objetivo de se encontrar com Orlando Lorena Guerra, membro da Força Pública de Minas Gerais (atual Polícia Militar), com quem mantinha um relacionamento e pretendia morar. Sua filha ficou sob os cuidados da avó, em Juiz de Fora.
No trajeto até Uberaba, Geralda Farine da Silva passou por Belo Horizonte, onde permaneceu por três dias na casa de um tio, antes de seguir viagem. Sua estadia no Triângulo durou pouco mais de uma semana, conforme relatado por seu defensor. “Poucos dias depois, em vista dos maus-tratos a que foi sujeita por Orlando, que é soldado da Força Policial, apresentou queixa ao seu chefe, comandante do 14.º Batalhão da Força Policial, a quem pediu — e foi concedido — um passe para regressar a Juiz de Fora.”
“De posse do passe que lhe foi conferido, viajou novamente para Belo Horizonte, com destino a Juiz de Fora, tendo, no entanto, por se achar enferma, estacionado novamente na casa de seu tio, onde ficou cerca de sete dias”, continua o relato do capitão Paulo Lobo Peçanha. Enquanto se recuperava, Geralda Farine da Silva leu num jornal que havia sido declarada desertora e estava sendo procurada pela polícia.
Acompanhada do tio, apresentou-se voluntariamente ao Quartel-General da Infantaria Divisionária, em Belo Horizonte. Presa, foi então transferida para Juiz de Fora, “acompanhada de um investigador da polícia, que trazia também o ofício n.º 619, de 20 de abril, no qual consta a apresentação voluntária da acusada naquele Quartel-General”. Na sede da 4ª Região Militar, teve sua prisão mantida, à espera do julgamento.
Mulher reservista
“Abandonou o serviço da Fábrica e deixou Juiz de Fora para acompanhar o homem com quem vivia, mas não o teria feito, por certo, caso soubesse da lei que existia a respeito e das penas a que estaria sujeita.” Assim começa a primeira parte da defesa apresentada pelo capitão Paulo Lobo Peçanha. Em seguida, ele traça uma cronologia dos acontecimentos para demonstrar o desconhecimento da acusada quanto à legislação de guerra.
Geralda Farine da Silva deixou Uberaba no dia 13 de abril, com o propósito de retornar ao serviço na Fábrica de Juiz de Fora. Os jornais noticiaram o caso em 15 de abril, com destaque para o fato de se tratar do primeiro episódio de deserção envolvendo uma mulher. “Deste modo, fica provado que não foi o medo das sanções o móvel de sua decisão”, argumentou a defesa.
E prossegue: “O alarde causado pelo julgamento do primeiro operário incurso nos artigos do Decreto-Lei nº 4.937, de 9 de novembro de 1942, foi o que pôs o nosso operariado a par das penas a que estaria sujeito caso abandonasse o serviço. A simples leitura do decreto, para gente ignorante ou pouco instruída, pouco esclarecimento sobre as responsabilidades poderia oferecer; apenas um comentário geral, com linguagem mais acessível e exemplificações, poderia ter evitado este e outros casos de deserção que se verificaram nesta Fábrica.”
Ainda sustentando a tese de desconhecimento da legislação, o capitão Paulo Lobo Peçanha alegou a existência de justa causa. Para isso, recorreu à alínea “b” do artigo 2º do Decreto-Lei nº 4.937, que considera como desertor — a ser julgado pelas leis em vigor — o trabalhador que faltar ao serviço por mais de oito dias sem justa causa.
Segue o defensor: “Ora, neste caso, há uma justa causa: a ignorância absoluta das disposições legais. Este é um caso em que a ignorância da lei constitui uma dirimente, por força dos próprios termos da norma. A acusada está amparada por este artigo, e com base nele, pode-se pedir sua absolvição.”
A defesa, então, avança para sua derradeira linha de argumentação, que acabaria por gerar forte repercussão jurídica no país. Para o capitão Paulo Lobo Peçanha, a legislação faz uma distinção clara entre “indústria bélica” e “fábricas consideradas de interesse militar”.
O artigo 1º do Decreto-Lei nº 4.937 estabelece que, “mediante aprovação do presidente da República, serão considerados de interesse militar os estabelecimentos fabris civis” indicados “como necessários à indústria bélica do país.” Já o artigo 2º trata das sanções ao “reservista com destino especial de mobilização para a indústria bélica (fábrica civil ou militar)”.
“Como se vê, em seus termos, a lei distingue perfeitamente a indústria bélica das fábricas que interessam à indústria bélica, tanto que estas últimas são sempre, de acordo com o artigo 1º, ‘estabelecimentos fabris civis’”, ressalta o capitão Paulo Lobo Peçanha.
E conclui: “A acusada, trabalhando em nossa fábrica, trabalha, portanto, na indústria bélica e, como tal, só poderia estar enquadrada no artigo 2º do Decreto-Lei nº 4.937. Mas esse artigo só impõe penalidades aos reservistas com destino especial de mobilização. Ora, a acusada é mulher e, como tal, não é reservista, tampouco poderia ter destino especial de mobilização. Não poderá ela, portanto, ser punida pelo artigo 2º, e muito menos pelo artigo 3º, que diz respeito a fábricas civis.”
O relator, capitão Celestino Delgado, por sua vez, apresentou relatório no dia 28 de abril de 1943 em que pede a condenação de Geralda Farine da Silva. Sua argumentação nega a existência de justa causa baseada no desconhecimento da lei, amparando-se em um artigo do Código Penal Militar. Quanto à interpretação dos dispositivos do Decreto-Lei nº 4.937, sustenta que, se as sanções se aplicam aos trabalhadores de qualquer fábrica considerada de interesse militar, “com mais força ainda deverão ser alcançados os pertencentes a uma fábrica de maior interesse, por ser militar.”
O julgamento pelo Conselho de Justiça
Um dia após a apresentação do voto do relator, capitão Celestino Delgado, foi marcado o julgamento de Geralda Farine da Silva, acusada do crime de deserção. O Conselho de Justiça, presidido pelo capitão Alfredo Américo da Silva, acatou os argumentos da defesa e absolveu a ré, “visto não encontrar nos autos fundamentos substanciais à sua condenação”.
A sentença considerou “que dos autos não está sobejamente provado ter a ré, Geralda Farine da Silva, cometido o delito de deserção de que é acusada no presente processo”. Isso porque, segundo a decisão, não havia no ordenamento jurídico aplicável “nítida distinção no texto do mesmo decreto entre indústria bélica civil ou militar e qualquer fábrica considerada de interesse militar”.
O colegiado também entendeu que “a lei em apreço trata de reservistas com destino especial de mobilização, e que a acusada não é reservista”, destacando ainda que, na parte aplicável à Fábrica de Juiz de Fora, o texto legal “não se refere a mulheres”, mas apenas a reservistas.
Condenação pelo Supremo Tribunal Militar
A liberdade de Geralda Farine da Silva durou pouco. Em 12 de maio de 1943, o promotor Amarílio Lopes Salgado, da 4ª Região Militar, apelou ao Supremo Tribunal Militar para reformar a sentença, “devendo, a nosso ver, a pena ser graduada no grau mínimo” de um ano de prisão.
Quanto à ausência de justa causa alegada pela defesa na instância inferior, o promotor afirmou que, “diante da invariável e pacífica jurisprudência a respeito, no crime de deserção não cabe o dispositivo em apreço, porque independe de intenção criminosa”.
Sobre a interpretação dos artigos do Decreto-Lei nº 4.937, de 9 de novembro de 1942, Amarílio Lopes Salgado tangenciou a polêmica, limitando-se a confirmar que a norma alcançava a acusada.
A acusação foi corroborada pelo procurador-geral da Justiça Militar, Waldemiro Gomes Ferreira, para quem a acusada trabalhava “num estabelecimento de propriedade do Ministério da Guerra, de natureza e fins precipuamente militares”. Por isso, segundo ele, “não se pode admitir, como pareceu ao Conselho de Justiça, que o legislador deixasse de subordinar à jurisdição especial as operárias das fábricas oficiais, e não dispensasse tratamento idêntico às que empreguem sua atividade na indústria particular”.
Por fim, o procurador-geral destacou que o Decreto-Lei nº 4.937 “assegura o pleno funcionamento dos estabelecimentos fabris militares e civis, produtores de materiais bélicos”, sendo que tal funcionamento “não estaria assegurado, em sua plenitude, se as operárias das fábricas militares pudessem ausentar-se do serviço, como e quando bem entendessem, diversamente de outras pessoas que ali mourejam”.
A defesa de Geralda Farine da Silva foi assumida pelo advogado Luiz Felippe Paletta Filho, que manteve o entendimento do Conselho de Justiça.
“De fato, o artigo 2º do Decreto-Lei nº 4.937 incrimina como desertor todo empregado reservista com destino especial de mobilização para a indústria bélica (fábrica civil ou militar) que faltar ao trabalho por mais de oito dias, sem justa causa. Mas, desde logo se nota a restrição: empregado reservista. Portanto, ficam fora de seu alcance todas as hipóteses em que o indiciado não seja reservista. Ora, Geralda Farine da Silva não era e nem podia ser reservista, dada sua condição de mulher.”
No entanto, no dia 6 de setembro de 1943, o Supremo Tribunal Militar se reuniu sob a presidência do ministro Almirante Raul Tavares e deu provimento à apelação da promotoria, nos termos do voto do relator, ministro Brigadeiro Heitor Varady, condenando Geralda Farine da Silva à pena mínima de um ano de prisão.
Prevaleceu o entendimento de que a situação da acusada se enquadrava no artigo 3º do Decreto-Lei nº 4.937, que estabelecia sanções para casos de deserção cometidos por “pessoas pertencentes a qualquer fábrica considerada de interesse militar (de administração ou mão de obra), reservistas ou não, com ou sem destino de mobilização”. Por essa condição, conforme o relator, “a deserção está, pois, perfeitamente caracterizada, pois a ausência foi voluntária, ilegal e sem causa justificada”.
Assim, por maioria de votos, o Supremo Tribunal Militar deu provimento à apelação da promotoria e modificou a sentença do Conselho de Justiça da Fábrica de Juiz de Fora, condenando Geralda Farine da Silva a um ano de prisão.

Matéria pública no jornal A Noite na edição de 8 de setembro de 1943
Enfim, liberdade
Embora a condenação tenha ocorrido por maioria de votos, a polêmica em torno da interpretação do Decreto-Lei nº 4.937 não foi superada. Em voto em separado, o ministro Almirante João Francisco Azevedo Milanez retomou a discussão ao considerar que a norma deixava claro “o que são estabelecimentos ‘considerados de interesse militar’, classificando-os como ‘estabelecimentos civis que os Ministérios da Guerra, da Marinha e da Aeronáutica indicarem como necessários à indústria bélica do país’”.
Dessa forma, prossegue o voto divergente, “aos operários da Fábrica de Juiz de Fora, que é um estabelecimento militar, e não civil, não pôde ser aplicado o artigo 3º do citado Decreto-Lei, como foi feito.” Por fim, Azevedo Milanez criticou a tentativa de “igualar as mulheres aos homens na aplicação da legislação penal militar”. E concluiu: “Há um enorme salto que não se coaduna com o espírito humanitário que, em toda a legislação brasileira, tem orientado e protegido o trabalho da mulher.”
A manifestação do ministro Almirante João Francisco Azevedo Milanez, em dissidência ao entendimento majoritário do Supremo Tribunal Militar, repercutiu nos principais jornais do país. A condenação de Geralda Farine da Silva incomodava jornalistas e juristas. Aproveitando a repercussão, a defesa solicitou autorização para que a pena fosse cumprida sob a forma de trabalho na Fábrica de Juiz de Fora — pedido que foi recusado.
Numa segunda tentativa, Geralda Farine da Silva recorreu ao presidente da República, Getúlio Vargas, por intermédio da Auditoria de Guerra de Juiz de Fora, solicitando indulto da pena. Alegou “não lhe ser possível, como era de seu desejo, cumpri-la trabalhando naquela fábrica”, pois precisava sustentar sua mãe enferma e sua filha paralítica. O pedido, contudo, foi negado.
Finalmente, em 16 de outubro de 1943, o advogado Luiz Felippe Paletta Filho apresentou embargos infringentes ao acórdão do Supremo Tribunal Militar — recurso cabível quando a decisão de apelação não é unânime. Na manifestação, retomou os argumentos do voto de Azevedo Milanez e sustentou que Geralda Farine da Silva não cometera crime algum, pois as disposições do Decreto-Lei nº 4.937 não lhe seriam aplicáveis.
Segundo a defesa, “o artigo 2º daquele diploma legal somente incrimina como desertor o ‘reservista com destino especial de mobilização para a indústria bélica’”. Dada sua condição de mulher, “a embargante não era e nem podia ser reservista”.
Da mesma forma, prosseguiu a defesa, “não é de se aplicar, também, a disposição do artigo 3º do decreto em foco”, que se refere “às pessoas pertencentes a qualquer fábrica considerada de interesse militar”. Afinal, “a Fábrica de Juiz de Fora não é uma fábrica de interesse militar, porque é mais do que isso: é uma fábrica militar”.
Finalmente, no dia 8 de novembro de 1943, novamente sob a presidência do ministro Almirante Raul Tavares, e agora com novo relator — o próprio Almirante João Francisco Azevedo Milanez —, o Supremo Tribunal Militar acolheu os embargos e absolveu a extranumerária diarista nº 894, Geralda Farine da Silva.

Matéria publicada pelo jornal A Cidade em 18 de novembro de 1943