Creio que um dos textos mais impactantes da Literatura Latino-Americana seja o conto O Aleph, de Jorge Luis Borges. Publicada em 1949, esta pequena obra-prima encarna a incomum capacidade – que divide com espécimes raros, como O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway – de esconder, num enredo aparentemente simples, um universo incomum, inesperadamente profundo de possibilidades. A referência, aliás, revela-se adequada ao contexto: enquanto no livro de Hemingway o universo inesperado e profundo se esconde na riqueza da vida mental de Santiago, Borges nos apresenta a busca por algo material, o aleph, “um dos pontos do espaço que contêm todos os pontos”.
No dia em que li esta fantástica história, que alcança seu ápice no momento em que o protagonista descobre esse lugar em que “cada coisa (…) era infinitas coisas, porque (…) a via claramente de todos os pontos do universo”, cheguei a uma conclusão: se Borges afirmou, usando o plural, que aquele era só um dos pontos em que essa visão era possível, certamente existiria ao menos outro aleph perdido em meio à poeira das estradas mineiras. Iniciei, então, o trabalho para encontrá-lo.
No entanto, de início, só tinha minha empolgação frente a uma tarefa hercúlea. Minas é Gerais e o aleph, comparativamente minúsculo. Precisava, pois, de um ponto de partida. Foi assim que surgiram na tela mental duas memórias. A primeira, de um amigo explicando o fenômeno dos fractais, em que certos padrões se repetem, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande. A segunda, de meu primo Gilson, citando Guimarães Rosa e afirmando que nada mais fractal há que uma pequena cidade: nela podemos ver as nuances do destino a se formar. Disso, me veio a primeira indagação: haverá um aleph em cada pequena cidade mineira?
Essa indagação/crença orientou minhas pesquisas por muito tempo. Comecei pelas avenidas, ruas e becos de Matias Barbosa. Mas, em seguida, parti para outras Gerais: Juiz de Fora, Barbacena, Itabira, Diamantina, Tiradentes, São João del-Rei, Juiz de Fora de novo… E, sempre que alguém se ofendia, afirmando a grandeza do próprio vilarejo, lembrava um geógrafo que certa vez me disse que as grandes cidades de Minas são, na verdade, a reunião de várias pequeninas, que se formaram no vale que vai de um morro até o próximo.
Entretanto, ainda que encontrasse muita universalidade no cotidiano aparentemente provinciano e pacato das nossas pequenas cidades, sentia-me longe ainda de meu objetivo. Foi quando surgiu o convite para subir as montanhas e ver tudo de cima. Naquele momento, o horizonte largo foi conquistado. Conquistado é palavra adequada, pois aqui, em meio ao mar de morros, ele não é uma oferta barata, como ocorre nas grandes planícies. O horizonte, em Minas, pede esforço. Seriam essas montanhas nosso aleph?
Neste momento, eclodiu o debate ao meu lado. Enquanto uns defendiam a cidade pequena como microscópio onde percebemos em minúcias os destinos do universo, outros exaltavam o olhar panorâmico que a montanha permite. Para os primeiros, as alturas eram imprecisas, vazias. Para os últimos, os agrupamentos humanos cercados por montanhas eram “túmulos” do olhar. Entre extremos, me senti profundamente perdido. Dividido entre a mecânica quântica e a relatividade, não conseguia encontrar uma teoria unificadora.
Foi quando, alteando-se sobre as vozes em disputa, lá embaixo, apitou um trem. Vi o fino traçado dos trilhos pelos quais seu corpo esguio seguia: entre cidades e montanhas, agrupamentos humanos e horizontes, o trem surgiu como a força que agregava tudo. Ele fez isso em outros lugares, sem dúvida. Mas, em nenhum com tamanha intensidade. Tanto que, para nós, virou palavra universal, capaz de designar o que quer que seja. Então, compreendi que minha busca havia terminado. Descobri, inclusive, o objetivo dessa coluna. Falar de um trem qualquer. De um aleph qualquer. Porque aleph de mineiro é trem.