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Eu gosto é do gasto

Barcos e barqueiros gastos – quando percorreram bons caminhos – são tesouros de experiência que não podemos perder (Foto: Zoltan Tasi/Unsplash)

Nonada de minhas travessias por sertões e veredas – no lombo de camelos e automóveis, ônibus e aviões – estive menos para Riobaldo e mais para Marco Polo. Apaixonei-me por cidades. Visíveis e invisíveis. Paixões tantas que não consigo definir qual lugar é meu Sol. Mas de uma coisa bem sei: Diamantina é minha Neblina.

Neblina densa, apesar de ser uma cidade solar. Saudade de desembarcar do cata-jeca, esticar as juntas, levantar os olhos, do chão de pedras ao horizonte. E sorrir, instintivamente, vendo-a luminosa, no colo do maciço, que a acolhe e protege. Depois descer a ladeira, feliz, cumprimentando desconhecidos, para encher o coração de experiências que, até hoje, guardo com carinho.

A universidade e os estudantes, os amigos queridos, os sabores e os cheiros, o som do Mercado Municipal nas manhãs de sábado, cada bar de cada beco, o casario sob o luar. Dentre tantas recordações, há uma que aquece singularmente meu coração: sair bem cedinho, caminhar pela Rua da Glória, ver o postal formado pelo Passadiço – um ipê amarelo ao fundo – entrar no Campus I. Na portaria, ter a felicidade de encontrar o Sr. Amaro, figura doce e luminosa, que abria um sorriso e dizia: “Bom dia!”

O “bom dia” daquele porteiro transmitia tanta energia que fazia boa a semana inteira.

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“Segundo Tempo!”, saudava o Sr. Amaro, quando voltávamos depois do almoço. Respondíamos e seguíamos para a lida, enquanto eu me interrogava, em pensamento, o quanto de lutas, o quanto de chorar demais foi necessário para aquele homem levar esse sorriso, em pleno segundo tempo da vida.

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Desde então, o Sr. Amaro veio se juntar a uma plêiade de idosos sábios que – cada um a seu jeito – alumiaram minha jornada, ensinado atalhos, protegendo-me das quedas. Já na primeira infância, quando minha mãe saia para trabalhar e me deixava com minha avó. Ou, anos depois, quando meu avô era contratado para alguma obra e permitia que eu fosse junto, promovido a aprendiz de servente.

A forma como se me desenhou o trânsito pela Terra talvez explique por que gosto tanto de O Velho e o Mar. A história contada por Hemingway espelha minha vida. Sempre fui o Manolin que aprendia com as vitórias e derrotas dos Santiagos. A mágica do livro foi permitir que eu mergulhasse nos pensamentos do velho.

No alto mar da vida, Santiago enfrenta luta feroz com inimigo maior. Suas vitórias se esvaem com o tempo. Seu corpo não tem a vitalidade de antes. Em compensação, pede pouco para continuar vivo. E sua mente – ah, sua mente! – compreende a sublimidade do aparentemente banal.

Depois de O Velho e o Mar, depois de Santiago, incorporei esse ensinamento. Colher esplendores sob a poeira do ordinário. Como o dia em que estava almoçando num PF qualquer e a TV começou a exibir um desenho animado. Levantei a cabeça quando o título foi anunciado: “Terceira Idade”.  O enredo? Uma equipe de super-heróis é atacada por um vilão que os transforma em idosos. Só uma heroína escapa. E ela – vendo que a nova versão dos amigos era muito melhor que a original – resolve deixá-los daquele jeito! Uma das jovens transformadas, antes com triunfos estelares, ficou a cara da Dona Florinda. Com bobes e tudo! Hahaha!

Dividido entre gargalhadas e garfadas de frango com quiabo, deixei meus pensamentos viajarem para Juiz de Fora: “Se essa tal Ravena conhecesse a Fundação João de Freitas, não precisaria disso. Encontraria sua versão do Shangri-la.” Foi o suficiente para o coração saltar no tempo, vinte anos atrás: domingo com nuvens de algodão, a turma em volta da Geraldinha, tirando nacos de sua doçura e falando em planos de ir à praia. A Maria escuta e nos chama. Aos cochichos, fala: “Vocês vão a Cabo Frio? Lá tem um bar na praia. Um cantinho para assinar. Eu escrevi: ‘Maria Oliveira esteve aqui. 13 de janeiro de 1961.’ Podem procurar!”

Enquanto o desenho continuava na TV, aquele olhar sapeca ressurgiu em minha tela mental. Os sorrisos se misturaram a lágrimas de gratidão e saudade.

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Não estávamos em Cabo Frio, mas noutro litoral.

Visto de longe, emoldurado pelo horizonte, o destino parecia convidativo. As fotos na internet corroboravam a impressão. Um banco de areia em meio ao oceano, cheio de vida. Corais e peixes, matizes se destacando na água translúcida.

Conforme nos aproximávamos, percebia o quanto estava enganado. O cenário era o mesmo, mas povoado por um caos humano tal que, na água remexida, os únicos peixes que vi foram as carcaças boiando, restos das porções consumidas pelos visitantes menos conscientes. No entanto, valeu a pena.

Valeu porque, por vezes, os fins não se justificam, mas os meios sim. O condutor com que o acaso nos premiara era um velho pescador, dono de barquinho minúsculo. Enquanto nos distanciávamos da praia, ele contara sua rotina. Metade do mês, levando turistas a localidades próximas. Nos dias restantes, rumo ao alto mar, na mesma pequena e frágil embarcação. Ia tentar a sorte com os cardumes. Para zarpar ou ficar, seguia o comando das marés.

Na volta, eu estava feliz. Escutando um pouco mais aquele homem sábio – sem camisa, rugas entrecruzadas com rachaduras causadas pelo Sol – era Manolin diante de Santiago. Que se danassem os farofeiros barulhentos, aquele era um grande dia.

Há ocasiões em que o destino não nos sorri. Mas o Destino, sim.

Lançados ao oceano da vida, nossos corpos são também embarcações em meio à imensidão. Somente sob intensivos cuidados, ganham forma e tamanho. Depois, comumente, passam algumas décadas velozes, cortando as ondas do tempo. Por fim, chega o momento em que começam a fazer água, a pedir cuidado e proteção. Entretanto, é também neste momento que muitas dessas embarcações conhecem muito bem o mar.

“Eu gosto é do gasto”, diz um dos versos de O velho e o moço, linda canção do grupo Los Hermanos. Barcos e barqueiros gastos – quando percorreram bons caminhos – são tesouros de experiência que não podemos perder. Nos ensinam a enfrentar ventos e ondas, calmarias e tempestades.

Talvez o gosto pelo gasto tenha também me encaminhado, inconscientemente, a Diamantina. E depois a São João del-Rei. Diamantina me encantava de tal forma que, quando não tinha o que fazer, flanava pelas ladeiras, subindo e descendo, sozinho, entrando em ruas que não frequentava, descobrindo paisagens. Da mesma maneira que, sempre que posso, baixo na casa de um de meus velhos, para prosear e aprender.

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“Segundo tempo”, grita o Sr. Amaro, de longe. Na virada dos 45, começo a trocar o uniforme. Até porque Belchior, da vitrola, adverte que a velha roupa colorida “não nos serve mais”. Diz também para cuidar do “blusão de couro”, antes que ele se estrague. Da porta, deixa um último conselho: é preciso exemplificar, para ser mais que um “estudante da vida que eu quero dar”.

Paulo, autor do maior segundo tempo da história, fita-me sério e diz: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, deixei tais coisas para trás”. Assevera também que ninguém precisa esperar por Damasco para experimentar novos rumos.

A vitrola volta a tocar e Milton Nascimento afirma o trabalho a fazer: “há que se cuidar do broto”. Carlos Maltz faz coro, pedindo que dê atenção aos que chegam a este mundo “depois de nós”. Até de um personagem de Naruto, na TV, escuto que o Rei são “as crianças de Konoha”.

De toda parte, surgem advertências contra os excessos. “Acautela-te contra a febre dos navios luxuosos”, afirmam, “pois a embarcação essencial, a cada dia, se desgasta”. Apontam tolos mesquinhos, a encher celeiros que jamais consumirão, enquanto prometem violência ao mundo. Mesmo após facear o risco da morte, tais loucos fogem à consciência da própria impermanência, não se abrandam.

“Nada disso é desculpa para que te desvies”, afirmam em coro.

No cais, aos poucos, um barquinho se delineia em meio à névoa. Convidam-me a entrar, pegar os remos.

“Vá!”, dizem, “mostre dignidade. Talvez um dia sejas o Amaro, o Santiago de alguém.”