Perdemos o Marquinho. Perdemos. Perdemos muito. Ainda estou digerindo a morte tão precoce do ativista do Movimento Gay (ele preferia assim), Marco Trajano. Um homem que não abria só as portas da sua casa para receber, acolher e ensinar a quem precisasse, mas também os braços e sorrisos largos para um bom papo no qual debatia sem pedantismo, sem arrogância, sem sutilezas (nenhuma…rs) e academicismos. Ensinava pelo afeto e pela experiência.
Desde que o ouvi falar pela primeira vez (ainda pelas ondas do rádio), me encantei com tamanha coragem para dividir sua experiência e comprar uma briga (sim, embora muitos dos mais jovens nem sempre tenham reconhecido o legado de desbravar o respeito por direitos que Trajano sempre teve como prática). Não demorei a fazer a primeira entrevista com ele, ainda como jornalista recém-formada, na antiga Rádio Solar AM. E, nos 23 anos seguintes, nunca mais passou muito tempo sem que a gente se encontrasse, conversasse e eu tivesse a chance de renovar minhas esperanças na mudança possível.
A forma de existir nesse mundo, por vezes tão hostil, que ele decidiu adotar, me fascinava. Ao contrário da maioria de nós, que esconde em nossas casas, bem lá no cômodo com a porta fechada, nossas dores, nossas angústias e nossa solidão, ele não só compartilhava suas histórias, como ouvia, com acolhimento às nossas. Era difícil não deixar a entrevista se transformar em uma “sessão desabafo” quando ele colocava os copos sobre a mesa de bar, no antigo MGM, que se confundia com sua casa, e não só nos olhava, mas enxergava quem estava a sua frente e, mais que isso, como poderia ajudar, como poderia tornar tudo mais leve.
Talvez por isso, a cada vez que eu voltava, levava mais gente. Ou, se fosse gente demais, levando o Marquinho para as salas de aula para conversar com meus alunos. Ele já recebeu uma turma inteira em sua casa. Estudantes de Design de Moda convidados a lançar um olhar sociológico e antropológico sobre a importância do ato de vestir para o reconhecimento de nossas identidades. No convite feito na aula anterior, eles não entenderam muito bem o que aquela professora estreante no curso estava propondo. Afinal, como seria essa aula na sede do Movimento Gay de Minas para a disciplina teórica “Identidade Visual”, ministrada por uma jornalista/socióloga, com a participação da drag queen Duda Flux, rainha da Parada Gay de 2017, e Marco Trajano, presidente do Movimento Gay de Minas?
Eles chegaram tímidos à Floriano, parte baixa, às 20h, e depois de dez minutos ouvindo o Marquinho falar, estavam todos encantados. Apaixonados pela paixão com que ele falava dos seus projetos, do compromisso que ele havia assumido com a construção de uma sociedade mais justa, menos hipócrita, menos homofóbica, mesmo que fosse no grito. Os alunos só saíram de lá depois de muita insistência e nunca mais faltaram um dia de aula. Fui escolhida paraninfa dessa turma e sei bem quando foi que essa relação de afeto começou. Acredito que essa devolutiva em forma de homenagem foi um ato de agradecimento por essa experiência maravilhosa de ouvir quem fala com amor, com compromisso, sem demagogia… Marquinho, te devo mais essa.
No início de 2015, em uma conversa, ele lamentava o fato de os eventos da Semana Rainbow não contarem com grande adesão de público e que, por diversos motivos, muita gente participava apenas da programação festiva, e pouco das discussões sobre as conquistas e desafios do movimento LGBT (sim, vou seguir usando a nomenclatura que ele preferia!). Não precisei pensar muito para sugerir levar as palestras da semana que antecede a Parada para a Estácio. Foi uma das experiências mais ricas da minha vida. Marquinho abriu o evento, e alunos de todos os cursos vieram participar. Ouvi, pela primeira vez, uma aluna em transição agradecê-lo pelas palavras e contar, emocionada, sobre a primeira vez que “desceu o Calçadão” vestida de acordo com sua nova identidade de gênero e o quanto essa experiência tinha sido transformadora para ela. Durante aquela semana, e ainda hoje, muitos alunos me param pelos corredores para falar da importância da fala do Marquinhos naquele dia.
Eu, felizmente,agradeci muitas vezes a ele. Agora fica o vazio. Quando perdemos alguém disposto a entregar a vida por uma causa, abre-se um buraco que é difícil fechar. “O diferente é legítimo”, me ensinou Marco Trajano. Não com palavras, com discursos ou com citações de leis. Ele me ensinou com o exemplo, e as referências não morrem: elas ficam encantadas como um tesouro que só quem soube enxergar a beleza multicolor do respeito à diversidade teve a chance de contemplar.
Te desejo, meu amigo, encontrar, enfim, um lugar onde os céus são azuis e os sonhos que você ousou a vida inteira sonhar se realizem, de verdade!